08 outubro 2024

A Decisão do TEDH (373)

 (Continuação daqui)



373. Uma saudável aversão ao poder político


A Igreja Católica está sempre pronta a dormir na cama com qualquer poder político (cf. aqui). Este fascínio pelo poder é uma das características mais marcantes do carácter anti-liberal da cultura católica e uma das que menos tem sido enfatizada.

Ela está presente no caso Almeida Arroja v. Portugal e põe em contraste a cultura católica portuguesa com a cultura protestante que enforma a CEDH e a jurisprudência do TEDH.

Quem, em Portugal, difamar o seu vizinho está sujeito a uma pena que, em geral, será de multa, mas que, em caso de reincidência, pode ir até dois anos de prisão. Isto é assim se o vizinho fôr um cidadão comum. 

Porém, se o vizinho fôr um agente do Estado como um deputado, um magistrado, um presidente da Câmara, um advogado ou até o chefe da repartição de Finanças, aí, o caso muda de figura, estamos a falar de gente importante. Aí, a difamação passa a ser agravada e as penas são aumentadas em 50%, significando que, no limite, podem ir até três anos de prisão.

Ora, eu tive a infeliz ideia de ofender um cara que era ao mesmo tempo deputado e advogado, para além da própria sociedade de advogados a que ele pertencia.  Não se faz a ninguém, muito menos a um cara como esses É difamação agravada. Apanhei uma pena de multa elevadíssima, 350 dias a 20 euros ao dia, num total de 7.000 euros. Da próxima vez, se não fosse o TEDH,  iria de certeza para a prisão.

É muito diferente da católica a maneira como a cultura protestante, que esteve na origem da sociedade livre, olha para o poder político. Fá-lo com desconfiança. E porquê? Porque são as pessoas que detêm alguma forma de poder aquelas que maior mal podem produzir às outras, e as figuras de Hitler ou Estaline ocorrem imediatamente ao espírito. O poder político é um mal necessário, é certo, mas, ainda assim, um mal.

A cultura católica vê o poder político como um amigo e, na verdade, a história da Igreja Católica não é outra coisa senão uma relação de concubinato com o poder político. Daí permanente bajulação desta cultura em relação ao poder político, concedendo-lhe privilégios, ou isentando-o de ónus, que não concede ao cidadão comum. Pelo contrário, a cultura protestante e de uma sociedade livre olha para o poder político como uma ameaça, exigindo que ele sirva a sociedade, e não que se sirva dela, e submetendo os seus agentes a exigências de comportamento muito mais severas do que aquelas que se aplicam ao cidadão comum.

Por isso, a cultura católica considera que é mais grave ofender um político do que um cidadão comum - e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que me condenou, expressa isso mesmo - ao passo que a cultura liberal do protestantismo, que enforma a jurisprudência do TEDH, considera que é exactamente ao contrário, um político é mais ofendível do que o cidadão comum. 

O traço distintivo de um verdadeiro liberal não é ele andar constantemente a agitar a bandeira da liberdade, como geralmente se crê. O traço mais distintivo de um verdadeiro liberal é a sua saudável aversão ao poder político. 

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