(Continuação daqui)
292. Três Castros, três burros
Logo que foi produzida a acusação e enquanto aguardava o julgamento no Tribunal de Matosinhos, dediquei-me a escrever uma novela judicial que tinha o título "The Blue Bag" (cf. aqui).
Os protagonistas eram inspirados em figuras reais, mas à parte este aspecto, todas as semelhanças da novela com a realidade são pura coincidência.
Do magistrado António Prado e Castro que produziu a acusação contra mim, e da palavra inglesa "meadow" que significa "prado", eu compus a figura central da novela, o procurador Tony Meadow, um feroz investigador criminal. E da juíza de instrução do Tribunal de Matosinhos que me mandou para julgamento, Catarina Ribeiro de Almeida, compus a figura da juíza Cathy Littleriver.
As chatices começaram logo na secretaria quando o criminoso Peter Throw notou que no despacho de acusação, a vítima dos crimes era tratada por Paulo Artur Dos Santos De Castro Rangel e ele por José Peter de Almeida Throw. Peter exigia também ser tratado por De, com maiúscula.
Quando a juíza Cathy soube disto reparou que também ela era tratada por de Almeida, e juntou a sua queixa à do criminoso. Foi também nesse momento que se deram conta de um facto que viria a influenciar decisivamente o curso dos acontecimentos. Descobriram que eram primos, da família dos De Almeida, ele pelo lado materno, ela pelo lado paterno, uma descoberta que mantiveram secreta.
O pior foi quando a queixa chegou ao conhecimento do magistrado Tony Meadow, que era o mais pomposo dos três, e ele verificou que na papelada do tribunal era tratado meramente por e Castro e não como devia ser, por E Castro. Apresentou uma queixa crime contra o oficial de justiça que redigiu os papeis, à qual juntou as queixas do criminoso Peter e da sua prima, a juíza Cathy. O crime era o de "discriminação no tamanho das letras" e dava até dez anos de prisão.
Juntavam-se na mesma queixa uma combinação nunca vista: uma juíza, um magistrado do Ministério Público e um criminoso. Para assegurar a imparcialidade em todo o processo judicial - que era um atributo muito respeitado na justiça do país - a abertura da instrução foi presidida pela própria juíza Cathy que, sem hesitação, viu ali gravíssimos indícios de crime, e mandou o homem para julgamento.
O julgamento teve lugar cinco anos depois e a presidir ao colectivo - por escolha aleatória, como mandava o princípio do juiz natural - estava o próprio Tony Meadow que entretanto se candidatara a uma posição de juiz. O oficial de justiça foi condenado a quatro anos de prisão, com a pena suspensa, e ao pagamento de indemnizações de 50 mil euros a cada um dos ofendidos. Como só ganhava mil euros ao mês (brutos) teve de vender a casa e o carro.
Porém, o momento alto da novela ocorreu já em terras argentinas quando Tony Meadow desencadeou uma daquelas espalhafatosas operações do Ministério Público - que ele próprio baptizou como "Operação Pampas" - numa derradeira tentativa para capturar Peter Throw. Meadow comandava uma força de 12 magistrados do Ministério Público, sete juízes de instrução e 74 agentes da PJ, a partir da Embaixada portuguesa em Buenos Aires.
Sentindo-se acossado e com muitas dores nas costas devido ao peso da mochila, Peter Throw resolveu comprar um burro argentino a um cigano que encontrou no caminho. Depois de muita ponderação, deu ao burro o nome de Castro em homenagem à vítima dos seus próprios crimes, que se chamava De Castro, e ao seu feroz perseguidor, que se chamava E Castro. Eram agora três Castros, três burros - pensou Throw -, enquanto caminhava lentamente numa tarde solarenga a norte de Luján.
Mas dois dias depois, o burro recusou-se a andar. Por inveja, após presenciar uma tórrida conversa entre Peter Throw e uma espampanante mexicana a combinarem um encontro íntimo para essa noite. Não era só inveja. A tristeza nos olhos de Castro fazia doer o coração a qualquer macho latino.
Em desespero, a comitiva de Tony Meadow cada vez mais próxima, na iminência de ser apanhado, Castro recusando-se a andar, teimoso que nem um burro, Peter Throw ligou à prima Cathy, que se encontrava a assinar uns despachos de acusação no Tribunal de Matosinhos.
O pedido de ajuda era o seguinte. Se ela lhe podia enviar uma burra portuguesa bonita, de preferência uma burra mirandesa, para animar o Castro. Ela ainda lhe perguntou qual Castro e ele respondeu: "O argentino... um dos portugueses nem sequer gosta de burras..." E foi na expectativa de vir a ter por companhia uma burra portuguesa, de cuja beleza, que era lendária, ele já ouvira falar, que Throw conseguiu pôr o burro a andar.
Semanas antes, a juíza Cathy já tinha mudado as medidas de coação ao primo passando-as de termo de identidade e residência, com obrigação de se apresentar às autoridades dia sim-dia não, para pulseira electrónica, a fim de conhecer permanentemente a sua localização. E foi assim que, três dias depois, um helicóptero da DHL aterrou com precisão matemática numa clareira da selva latino-americana levando a bordo uma lindíssima burra mirandesa, branquinha como a neve, de nome Branca.
Quando a viu sair do helicóptero, em passo lento, esplendorosa, um laçarote vermelho ao pescoço e uma reluzente pulseira na pata dianteira do lado esquerdo, Castro até arregalou os olhos. Foi amor à primeira vista.
A partir de agora, com o grupo embrenhado na selva do Paraguai, Castro e Branca quase permanentemente recolhidos dentro do arvoredo, não havia maneira de Tony Meadow deitar a mão a Peter Throw.
Acabariam os três por regressar a Portugal depois de um telefonema secreto em que a juíza Cathy informava o primo de que, nesse dia, estava em todos os jornais a notícia de que o processo dele no Tribunal de Matosinhos tinha desaparecido misteriosamente. O Ministério Público até já tinha aberto um inquérito. Ela própria estava boquiaberta como é que aquilo tinha acontecido.
"Sem processo não há crime" - pensou Throw, inspirado pela prima - e decidiu regressar.
Mas o regresso não se fez sem dificuldades. Branca queria regressar a Portugal porque não se dava bem com as moscas do Paraguai. Causavam-lhe alergias e, às vezes, até vómitos. Mas Castro, o burro argentino, que era tímido e cerimonioso não queria vir incomodar os portugueses - "Mais um burro em Portugal...", pensava ele, consternado -, e, ainda por cima, não se sentia muito à vontade com a língua.
Foi Branca que um dia, já meio irritada, o convenceu com um argumento decisivo, falando-lhe com voz autoritária e alguma fluência em castelhano: "Castro, ou vens para Portugal ou eu vou sozinha!... Deixa-te dessas mierdas, pá!.. Já há tanto burro em Portugal com o nome Castro que mais um, como tu, não incomoda ninguém!".
(Continua acolá)
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