02 julho 2024

A Decisão do TEDH (253)

 (Continuação daqui)





253.  A comunidade cigana


A corporação é uma instituição pertencente à cultura católica e medieval, nascida numa altura em que a cultura católica era dominante na civilização ocidental. Através dela, o Estado cedia uma parte do seu poder soberano às ordens profissionais tendo em vista a promoção do bem-comum. Um dos objectivos visados pelas ordens profissionais era o de que os próprios profissionais do mesmo ofício zelassem pela integridade dos seus pares e pelos padrões da sua profissão.

É esta a função principal da Ordem dos Advogados - garantir a integridade pessoal e profissional dos seus membros, a confiança do público nos advogados acreditados pela Ordem, e elevados padrões de qualidade na advocacia.

Porém, a Ordem não faz nada disto e, em lugar de denunciar e penalizar os advogados prevaricadores do código de ética e deontologia da profissão e, mais ainda, os advogados criminosos, esconde-os, permitindo que o público seja continuamente enganado por eles e vítima dos mais rebuscados crimes engendrados por eles. Faz isso mantendo secretas as queixas feitas à Ordem, deixando prescrever os processos e promovendo amnistias.

Felizmente, existem outras instituições que não têm esses pruridos de esconder criminosos e os denunciam à Ordem, mas tanto quanto se pode avaliar pelas consequências, também nestes casos, a Ordem nada faz.

Em Dezembro de 2008 o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) queixou-se à Ordem dos Advogados que alguns advogados portugueses que litigavam junto deste Tribunal reclamavam custos e despesas totalmente desproporcionados e sem justificação (cf. aqui). Trata-se da cultura de rapina a que fiz referência no post anterior (o termo jurídico correspondente é extorsão, um crime que é punível mesmo na forma tentada). 

Nestes casos, a vítima do crime de tentativa de extorsão é o Estado (isto é, os cidadãos portugueses) porque, se o TEDH conceder as importâncias reclamadas pelos advogados, quem é chamado a pagar é o Estado português.

Usando a base de dados do Ministério Público (cf. aqui) eu decidi analisar os acórdãos do TEDH produzidos nos três anos anteriores a Dezembro de 2008 para identificar os advogados que tentavam extorquir o Estado português através do TEDH e que eram, portanto, especialmente visados pela carta dirigida por este Tribunal à Ordem dos Advogados. 

Para o efeito, fui consultar em cada acórdão a rubrica "Costs and Expenses" ou "Frais et dépens" e estabelecer a relação entre aquilo que é reclamado pelo advogado e aquilo que é concedido pelo TEDH para assim chegar ao "múltiplo do exagero" ou "factor de extorsão", o número de vezes que o montante reclamado excede aquilo que o TEDH considera razoável (arredondado para o número inteiro mais próximo).

Convém esclarecer que esta rubrica de "Custos e despesas", quando se refere a custos e despesas incorridos exclusivamente junto do TEDH, inclui sobretudo os honorários do advogado, já que, em virtude de a litigação junto do TEDH ser gratuita e não-presencial, todos os outros custos são insignificantes (v.g., portes de correio, fotocópias das decisões dos tribunais nacionais).

Eis os casos mais ostensivos (considero apenas os casos em que o múltiplo do exagero é superior a 3, isto é, em que o advogado reclama mais de três vezes aquilo que é devido):

-Martins Castro e Alves Correia de Castro c. Portugal, acórdão de 10 de Junho de 2008, advogado: J.J. Ferreira Alves. O advogado reclama, no total, 19.826,61 euros e o TEDH concede 3.370,00 (Múltiplo do exagero: 6)

-Feliciano Bichão c. Portugal, acórdão de 20 de Novembro de 2007, advogada: B. Bichão. A advogada reclama 18.748,41 euros e o TEDH concede 2.500,00 (Múltiplo do exagero: 7)

-Sociedade Agrícola Herdade da Palma, S.A. c. Portugal, acórdão de 10 de Julho de 2007, advogada: L. Pires de Lima. A advogada reclama 20.000,00 euros e o TEDH concede 2.000,00 (Múltiplo do exagero: 10)

-Antunes et Pires c. Portugal, acórdão de 21 de Junho de 2007, advogado: J.J. Ferreira Alves. O advogado reclama 2.450,00 euros e o TEDH concede zero (Múltiplo do exagero: infinito).

-Ferreira Alves c. Portugal (Nº 3), acórdão de 21 de Junho de 2007, advogado: M. Brandão. O advogado reclama 39.193,93 euros e o TEDH concede 2.500,00 (Múltiplo do exagero: 16).

-Monteiro da Cruz c. Portugal, acórdão de 17 de Janeiro de 2006, advogado: J.J. Ferreira Alves. O  advogado reclama 22.969,00 euros e o TEDH concede 2.000,00 (Múltiplo do exagero: 11).

-Magalhães Pereira c. Portugal, acórdão de 20 de Dezembro de 2005, advogada: J. Pires de Lima. A advogada reclama 10.000,00 euros e o TEDH concede 2.500,00 (Múltiplo do exagero: 4).


Passaram mais de 15 anos sobre a carta do TEDH à Ordem dos Advogados. E o que fez a Ordem para parar este regabofe? 

A reposta pode inferir-se a partir daqui:

-Almeida Arroja c. Portugal, acórdão de 19 de Março de 2024, advogado: J.J. Ferreira Alves. O advogado reclama 41.712,54 euros e o TEDH concede 5.000,00 (Múltiplo do exagero: 8).

Conclusão: Aquilo que os portugueses chamam a quem pede pelas coisas que vende ou pelos serviços que presta um múltiplo do seu valor real é a maior injustiça que se pode cometer em Portugal em relação à comunidade cigana.

(Continua acolá)

Sem comentários: