27 maio 2024

A Decisão do TEDH (193)

 (Continuação daqui)




193. A mecânica da extorsão


Quando Adam Smith, no seu célebre livro "A Riqueza das Nações", que deu origem à moderna Economia, apontava Portugal, na altura governado pelo Marquês de Pombal, como o exemplo acabado do país atrasado e pobre, a razão é que nada se fazia no país que não fosse mandado pelo Marquês ou autorizado por ele (cf. aqui). À "mão visível" do Marquês, Smith contrapôs a "mão invisível" do mercado. Os países que seguiram as ideias de Smith (o principal foi os EUA) andaram para a frente, enquanto Portugal ficou para trás.

O mercado veio acabar com a conflitualidade social em torno da ideia do "preço justo". Um preço determinado administrativamente, como o laudo, está sujeito a critérios de justiça e é fonte de conflitualidade, o vendedor considerando-o injusto porque baixo e o comprador  considerando-o injusto porque alto. Pelo contrário, o preço de mercado, não sendo determinado por ninguém, mas o resultado de um processo impessoal, não está sujeito a critérios de justiça. Não há injustiça num preço de mercado.

A economia de mercado veio diminuir a conflitualidade entre comprador e vendedor, e não apenas pela substituição de formas administrativas de fixação de preços (como o laudo) pelo preço de mercado, mas também desenvolvendo outros mecanismos visando a minimização do potencial para o conflito.

Os principais são o orçamento e o contrato. Quem precisa dos serviços de um electricista, de um contabilista, de um construtor civil, de um engenheiro, de um economista ou de um pedreiro, pede um orçamento e decide com base nele. Pode ir mais além e exigir um contrato onde, para além dos trabalhos a realizar e do respectivo preço, se prevejam outras condições (v.g., prazos, plano de pagamento, indemnizações por incumprimento, etc.)

Isto é assim em todas as profissões e em toda a espécie de serviços. Excepto na advocacia.

É altura de fazer uma reserva. Aquilo que me proponho fazer a seguir é a descrição de um cultura existente na advocacia, sob a égide da Ordem dos Advogados, e confirmada pela minha própria experiência pessoal. Não envolve julgamento moral e acredito firmemente que a maior parte dos advogados não se aproveita dessa cultura para explorar os seus próprios clientes. Mas é uma cultura que deixa a porta aberta a que outros o façam. As conclusões podem parecer às vezes chocantes, mas são o resultado inevitável da cultura medieval em que vive a advocacia portuguesa no seu embate com a realidade de uma sociedade moderna.

A conclusão mais chocante posso antecipá-la já. A profissão da advocacia que é tão estrita em tribunal a exigir ao electricista, ao padeiro e ao merceeiro que documente todas os seus actos em orçamentos, contratos, recibos, facturas, preços afixados à porta, etc., foge de tudo isto como o diabo foge da cruz.  

1) Orçamentos e Contratos. Quem aproximar um advogado para lhe solicitar um serviço, dificilmente obterá dele um orçamento, como acontece em qualquer outra profissão. O advogado vai-se esconder sob uma miríade de argumentos (que seriam igualmente válidos para qualquer outra profissão) para não dar um orçamento ao cliente, e muito menos assinar com ele um contrato discriminando os serviços a realizar e o respectivo preço.

Está iniciado o processo de extorsão.

2) Procuração e pagamento inicial. A preocupação do advogado é que o cliente assine  uma procuração que lhe dê poderes de representação e faça um pagamento inicial. Em casos mais extremos, o advogado pode dizer que só trabalha com pagamento antecipado e solicitar ao cliente um pagamento elevado, no entendimento de que esse pagamento elevado se destina a pagar todos os serviços a prestar.

3) Recibo ou factura. Dificilmente o cliente obterá imediatamente do advogado um recibo ou uma factura pelo dinheiro que lhe entregou, com a discriminação dos serviços ou despesas a que o pagamento se refere.

4) Serviço. Durante a relação, o advogado procurará esconder tanto quanto possível do cliente os trabalhos que faz em nome dele. O objectivo é que o cliente nunca saiba exactamente os serviços que lhe são prestados para que não os possa avaliar.

5) Poder de monopólio. Nesta altura, o cliente está "no escuro" acerca dos serviços que o advogado lhe presta e qual o preço que vai pagar por eles e, com o processo a correr, está literalmente nas mãos do advogado. Na linguagem do economista, o advogado tem sobre o cliente um poder de monopólio que é praticamente absoluto.

O processo de extorsão está agora plenamente em curso.

6) Mais pagamentos. Pelo caminho, e como os processos judiciais são morosos, há sempre um incidente processual, uma reclamação, um recurso, que permite ao advogado pedir mais dinheiro ao cliente, sob o argumento de que não estava incluído no pagamento inicial. Este procedimento pode repetir-se várias vezes durante o processo.

7) O final do processo. Até que chega o final do processo. Se o processo foi ganho e o advogado sente que o cliente tem posses, vai-lhe apresentar uma conta que deixa o cliente abananado. O pagamento inicial foi, afinal, só para despesas, uns "trocos". O trabalho propriamente dito não estava incluído.  São milhares de páginas e centenas de horas de trabalho a centenas de euros à hora. O cliente pode sentir que vai ter de vender a casa só para pagar ao advogado. (**)

8) A ameaça. E se o cliente, a meio do processo, decidir despedir o advogado e arranjar outro? Ainda assim não se livra dele. O advogado ameaça o cliente com o tribunal. Na realidade, basta que ele ponha em tribunal um processo de honorários contra o cliente (em que normalmente o tribunal pede um laudo à Ordem), para que qualquer outro advogado fique impedido por largo tempo (dado o backlog existente na Ordem), ou em sérias dificuldades, para assumir a representação do cliente. É isso que diz o Estatuto da Ordem dos Advogados, no seu artigo 112º: 

 2 - O advogado a quem se pretende cometer assunto anteriormente confiado a outro advogado não deve iniciar a sua atuação sem antes diligenciar no sentido de a este serem pagos os honorários e demais quantias que a este sejam devidas, devendo expor ao colega, oralmente ou por escrito, as razões da aceitação do mandato e dar-lhe conta dos esforços que tenha desenvolvido para aquele efeito. (cf. aqui)

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(*) Eu já tive um advogado que me exigiu o pagamento antecipado sob o argumento de um dia ter representado uma prostituta que, no final, não lhe pagou, argumentando que ela própria se fazia pagar antecipadamente dos seus clientes. (Eu tratei o advogado como uma prostituta e paguei-lhe antecipadamente. O pior foi depois. É que, tanto quanto sei, as prostitutas fazem-se pagar antecipadamente mas não também postecipadamente).

(**) Eu já tive um advogado que, depois de eu lhe ter pago o serviço antecipadamente, mais tarde me apresentou uma conta que eu ia caindo para o lado. Começou por dizer que já havia advogados a cobrar 400 euros à hora e explicou-me que não era exagerado porque ele próprio recentemente tinha ido ao médico e, por uma consulta de dez minutos, pagou 80 euros. (Na realidade, sem intervalos para xixi, isto dá 480 euros à hora)

(Continua acolá)

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