27 maio 2024

A Decisão do TEDH (192)

(Continuação daqui

Fonte: cf. aqui


192. Laudo


Entre as funções do Conselho Superior da Ordem dos Advogados previstas no artº 44º dos seus Estatutos está a seguinte:

"e) Dar laudo sobre honorários, quando solicitado pelos tribunais, pelos outros conselhos ou, em relação às respetivas contas, por qualquer advogado ou seu representante ou qualquer consulente ou constituinte."(cf. aqui)                               

O que é o laudo?

O laudo é uma instituição económica medieval que ainda hoje sobrevive no seio de uma instituição igualmente medieval - a Ordem dos Advogados.

Trata-se de uma avaliação, feita por técnicos, do preço de um bem ou serviço. Neste caso, trata-se da avaliação do preço do serviço prestado por um advogado, feita por advogados. Por outras palavras, advogados a avaliarem o preço dos serviços prestados pelos seus próprios colegas. Adivinha-se, desde já, quão isenta e imparcial será esta avaliação.

O laudo é referido nos Estatutos em relação com situações de conflitualidade entre o advogado e o seu cliente acerca do preço (pomposamente chamado de honorários) que o primeiro cobra ao segundo, e a questão que imediatamente ocorre ao espírito é a de saber se haverá muitas situações de conflitualidade entre advogados e os seus clientes.

Segundo estatísticas referidas pelo meu colega de blogue, Joaquim, quando há cerca de três anos ele se queixou à Ordem de estar a ser vítima de uma tentativa de extorsão por parte de um advogado, havia na Ordem 50 mil queixas pendentes contra advogados e, logo na altura, eu vaticinei que a esmagadora maioria seria pela mesma razão - tentativa de extorsão (cf. aquiaqui). 

Comecei por referir que o laudo é uma instituição económica medieval. É também uma instituição de justiça medieval, procurando fazer justiça entre o advogado e o seu cliente através da procura de um "preço justo" que, alegadamente, compatibilize os interesses de ambas as partes.

Trata-se de uma justiça duplamente medieval, primeiro porque é parcial, em que o conflito entre o advogado e o seu cliente é julgado por uma instituição afecta ao primeiro. São os pares do advogado em litígio que julgam o caso que o opõe ao seu cliente. É como se, numa disputa pessoal entre um jogador do Benfica e outro do F.C. Porto, se chame a equipa do Benfica para julgar o caso.

A segunda característica de justiça medieval envolvida no laudo refere-se à ideia de "preço justo", mas antes de a tratar é necessário responder a uma questão que eu próprio levantei desde o início. Se o laudo é uma instituição económica medieval, qual a instituição económica moderna que o veio substituir? 

-O preço do mercado.

Quando Adam Smith, o criador da Economia moderna, se referiu à "mão invisível" ele referia-se ao processo impessoal do mercado. Num mercado participam frequentemente milhares de pessoas, às vezes milhões, de um lado e do outro, do lado da procura e do lado da oferta. Mas os resultados finais desse processo - como o preço de mercado - não são determinados por nenhum pessoa, ou grupo de pessoas, em particular.

Só às decisões humanas é possível aplicar critérios de justiça e dizer se uma decisão humana é justa ou injusta. Ora, o preço do mercado não é o resultado da decisão de uma pessoa ou grupo de pessoas em particular. É o resultado de um processo impessoal ao qual não se aplicam, portanto, os critérios de justiça. Um preço de mercado pode ser alto ou baixo, mas não é justo ou injusto.

É ao contrário no laudo. O laudo é determinado por uma pessoa ou conjunto de pessoas e por, isso, ao laudo podem aplicar-se os critérios de justiça; na realidade, o laudo representa a tentativa de encontrar um "preço justo", que é uma ideia medieval, ultrapassada, e acerca da qual jamais foi possível estabelecer algum acordo.

Mas, sendo assim, se o laudo é uma instituição económica antiquada, tendo sido substituída modernamente pelo preço de mercado, e se faz uso de uma "justiça" medieval no duplo sentido em que procura realizar um ideal de justiça que não existe ("o preço justo") através de um julgamento parcial (advogados a julgarem litígios entre advogados e os seus clientes), para que serve, afinal, o laudo em pleno século XXI? 

Serve para a Ordem dos Advogados dar cobertura e decidir, em última instância, os processos de extorsão dos advogados sobre os seus clientes e que motivam as dezenas de milhares de queixas que estes têm pendentes na Ordem. 

(Ver a seguir: "A mecânica da extorsão")

(Continua acolá)

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