05 março 2024

Mil e uma (21)

 (Continuação daqui)




21. O mandarim


No Sábado passado o António Barreto publicou um interessante artigo no Público sob o título "O fim dos partidos políticos" (cf. aqui) onde, essencialmente, defende a tese de que os partidos políticos em Portugal se transformaram de instituições ideológicas em instituições pessoais, deixando de estar ao serviço da defesa de um sistema de ideias (ideologia) para passarem a estar ao serviço de uma pessoa (o chefe).

A evolução é perfeitamente compreensível num país de tradição católica como Portugal e cada vez será mais acentuada. É que o povo português reconhece a importância e a necessidade de um chefe, já quanto à discussão das ideias ele não sabe bem para que é que isso serve. A cultura católica é uma cultura popular, não uma cultura intelectual. Um cultura intelectual é a cultura protestante e, mais ainda, a judaica.

Vale a pena introduzir aqui uma nota pessoal. Aos 24 anos de idade, em 1978, fui viver para o Canadá, um país de cultura anglo-saxónica e que nasceu democrático, ao contrário do meu país que tinha nascido absolutista. Os choques culturais não foram pequenos nem poucos. Um deles aconteceu quando me dei conta que os altos funcionários do governo canadiano - o equivalente aos directores-gerais da burocracia portuguesa - eram chamados mandarins. 

A surpresa é que a palavra, usada num país anglo-saxónico, me parecia portuguesa porque era a mesma palavra que os portugueses usavam para designar os altos burocratas chineses.  E estava certo, a palavra mandarim é portuguesa e tinha-se internacionalizado, mas faltava-me compreender um pormenor que só descobri mais tarde - a origem da palavra.

A palavra mandarim tem origem no verbo português mandar, e logo imaginei os portugueses a chegarem à China e a perguntar à primeira comunidade que encontravam "Quem é que manda aqui?", e assim que aparecia o chefe, logo imaginei um português a comentar para o outro em voz baixa: "Este tipo é que é o mandarim".  

Para um português é decisivo saber quem manda, algo que para um inglês ou um canadiano, na sua cultura democrática, não é nada decisivo e até parece mal. A língua inglesa teve de importar do português uma palavra para exprimir uma ideia que a cultura anglo-saxónica não tem - o chefe todo poderoso, o patrão, o manda-chuva, o homem que manda na comunidade, sem cuja autorização nada nem ninguém se pode mexer.

O contraste entre a cultura autoritária dos portugueses e a cultura democrática dos canadianos podia resumir-se nessa ideia e nessa palavra -  mandarim.

Evidentemente, à escala universal, o mandarim é a figura do Papa, que é também a representação pessoal de Deus. Ora, os protestantes rejeitaram o Papa, não têm mandarim, ficaram sem a representação pessoal de Deus. Deus, para eles, existe apenas como ideia. Não há ninguém a mandar na comunidade.

Daí que os protestantes privilegiem as ideias e os católicos as pessoas. Na tradição católica tudo é pessoalizável porque o próprio Deus é uma pessoa, um Pai, um Papa. Não surpreende, por isso que os partidos políticos, que nasceram como correntes de ideias ou ideologias nos países protestantes, se tenham transformado no muito católico Portugal em instituições cuja marca distintiva é a procura por um mandarim e a lealdade ao seu mandarim.  

(Continua acolá)

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