01 março 2024

Mil e uma (20)

(Continuação daqui)



20. O matarruano


Para quem se interessa por estes temas, a história mais deliciosa e verdadeira foi-me contada por um médico amigo.

Ele tinha acabado de consultar um padre e decidiu provocá-lo precisamente com uma conversa de católicos e protestantes. O médico argumentou que o protestantismo era superior ao catolicismo porque tinha encorajado o homem comum a interpretar as Escrituras com todas as consequências que daí tinham resultado para o mundo, como o aumento da literacia, o desenvolvimento do espírito investigativo que está na base da ciência moderna, etc.

O padre ouviu tudo em silêncio e foi só quando o médico terminou, que o padre objectou humildemente:

-Oh doutor, mas já imaginou o que é um matarruano a interpretar a Bíblia?  

Um país católico, imbuído da sua cultura personalista - a ideia de que cada pessoa difere da outra sobretudo pela sua personalidade - estimula a multiplicidade de personalidades. É possível encontrar todas as personalidades que se possam imaginar num povo de cultura católica, incluindo, naturalmente, o matarruano. 

Ora, a figura do matarruano (bem como muitas outras figuras típicas do povo católico, v.g., o chico-esperto, a sopeira, a bisbilhoteira) não existem na cultura protestante onde todas as pessoas são iguais umas às outras, meros indivíduos, e onde a ideia de personalidade está ausente. 

Tudo o que era diferente, a começar pelo padre católico, foi arrasado pelo protestantismo.

A consequência é dramática para a imitação católica da democracia. Quando a democracia liberal é importada num país de cultura católica, e o povo é chamado a desempenhar funções de governação e de responsabilidade social - como as de ministro, juiz, procurador do ministério público, professor ou militar -, a probabilidade é que, mais cedo ou mais tarde, um matarruano chegue a ministro, a juiz do Supremo, a magistrado do ministério público, a professor catedrático de uma Universidade, a comentador televisivo ou a general.

Escusado será dizer que a figura do matarruano é letal para a democracia. 

(Continua acolá)

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