01 março 2024

Mil e uma (19)

 (Continuação daqui)




19. Terramoto social

O catolicismo é uma religião pessoal, Deus exprime-se através de pessoas - os padres. O protestantismo, pelo contrário, é uma religião impessoal que cortou com todas as pessoas que o catolicismo punha no caminho entre o homem e Deus, a começar  pelos padres, mas cortou também com os santos e a própria Virgem Maria.  

Ao rejeitar a unidade doutrinal do catolicismo, o protestantismo encorajou cada homem a interpretar a Bíblia, mas rapidamente surgiram divergências de interpretação que deram lugar a múltiplas correntes do protestantismo e, dentro de cada uma, a muitas sub-correntes, as quais hoje se contam aos milhares, e que os católicos tratam depreciativamente por seitas.

Daqui resultou uma outra diferença entre catolicismo e protestantismo que enfatiza o carácter pessoal do primeiro e o carácter impessoal do segundo. Aquilo que une os católicos é uma pessoa - o Papa -, ao passo que aquilo que une os protestantes é uma ideia - a  ideia de Deus. 

Central ao carácter pessoal do catolicismo é a ideia de personalidade. Para o catolicismo Deus está, em primeiro lugar, nas pessoas, e cada pessoa é dotada de um conjunto de características pessoais que a distingue de todas as outras - a sua personalidade. Este personalismo católico torna cada ser humano, não um mero indivíduo, igual a todos os outros, mas uma pessoa, diferente de todas as outras - um ser humano único e irrepetível. Os padres, que são imitações de Cristo, nas suas diversas personalidades, exprimem também a multiplicidade de personalidades que Deus desejou para a família cristã.

Esta pessoalidade que é conferida ao catolicismo pela existência dos padres, não existe no protestantismo, que olha cada pessoa como sendo igual a todas as outras, um mero indivíduo. É que para o protestantismo, Deus não está em primeiro lugar nas pessoas, mas nas ideias, e convém acentuar o plural (ideias) e não o singular (ideia de Deus) porque os protestantes rapidamente se dividiram acerca da questão em milhares de seitas. 

O protestantismo é uma religião ideológica, uma religião intelectual que põe as ideias acima das pessoas. Pelo contrário, o catolicismo é uma religião pessoal, uma religião popular, que põe as pessoas acima das ideias. Os partidos políticos são a expressão laica das seitas protestantes com as suas ideologias (versão laica das teologias protestantes) a concorrerem umas contra as outras.

 Já se imaginou o que representa tudo isto a entrar pela porta dentro de um país de religião católica, como Portugal, que não admite seitas mas defende a comunidade, que não tem correntes ideológicas em concorrência pela Verdade mas uma doutrina única que afirma ser a Verdade, que não põe as ideias acima das pessoas mas as pessoas acima das ideias, que não tem uma cultura intelectual mas uma cultura popular?

Prepare-se que vem aí terramoto social. É preciso tempo, mas tempo é tudo o que é preciso (a União Europeia tem contribuído decisivamente para o diferir). 

(Continua acolá)

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