(Continuação daqui)
38. A malta do respeitinho
Não é por acaso que, no acórdão Almeida Arroja v. Portugal (cf. aqui), o TEDH por duas vezes relembra ao Estado português a necessidade de acabar com o crime de difamação, uma vez invocando uma Resolução do Conselho da Europa, outra uma Recomendação da ONU.
A cultura anti-democrática e autoritária dos portugueses exprime-se em inúmeros detalhes, e não é só na criminalização da difamação - o caminho por excelência para qualquer cacique, em posição de poder, calar, e no limite, pôr na cadeia, uma pessoa inocente.
Essa cultura anti-democrática exprime-se na própria formulação do crime de difamação. Este crime está regulado no artigo 180º do Código Penal (cf. aqui) e comporta uma pena que pode ir até dois anos de prisão. Esta é a difamação simples. Mas depois, no artigo 184º, é introduzida uma categoria especial de pessoas a que corresponde o crime de difamação agravada, comportando um aumento de 50% nas penas que, no limite, podem ir até três anos de prisão.
Ocorre perguntar: Quem será esta casta de intocáveis, esta aristocracia republicana, esta malta do respeitinho (como lhe chamou um jornalista que cobriu o meu julgamento: cf. aqui), acerca da qual qualquer cidadão deve ser particularmente cuidadoso para não os ferir quando se refere a eles?
A resposta é dada na alínea l) do artigo 132º do mesmo Código Penal:
l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;
Ora, este é precisamente o grupo de pessoas (figuras públicas) em relação às quais a jurisprudência democrática do TEDH considera que a margem do direito à liberdade de expressão é mais ampla (cf. aqui). Por outras palavras, quem tiver razões para desancar alguém em público, sinta-se mais à vontade para desancar as pessoas indicadas acima do que qualquer outra pessoa.
A lei penal portuguesa que regula os limites à liberdade de expressão podia ser simplesmente diferente da lei e da jurisprudência democráticas sobre o assunto. Podia ser apenas diferente. Mas não é. ´
É absolutamente ao contrário.
Portugal vai comemorar em breve 50 anos de democracia. Por assim dizer.
(Continua acolá)
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