V. A malta do respeitinho
Ainda hoje não consigo compreender as razões que terão levado os dois acusadores, o magistrado Y, em representação da acusação pública, e o Papá Encarnação, em representação da acusação particular, a defenderem o juiz-relator do acórdão que me condenou no Tribunal da Relação do Porto (cf. aqui).
Será que ele lhes pediu ou o gesto terá sido espontâneo - e logo os dois?
Como já referi, num requerimento que submeti em Maio ao TRP eu pedia a nulidade do acórdão contestando a imparcialidade do juiz-desembargador Pedro Vaz Patto com base nos argumentos que indiquei noutro lugar (cf. aqui).
Pois, umas semanas depois, em lugar de ser o juiz a defender-se, vieram os dois acusadores defendê-lo. Com amigos assim, um juiz não precisa de inimigos para poder violar livremente o código deontológico da sua profissão.
Eu disse dois acusadores?
Peço desculpa. São três, porque o Papá Encarnação trouxe o filho atrelado. O Papá Encarnação anda sempre com o filho atrelado. O documento da Miguel Veiga, Neiva Santos & Associados, que representa a Cuatrecasas e o Paulo Rangel no processo, é assinado pelo Papá Encarnação e pelo filho.
Eu devo dizer que tenho o Filho Encarnação em alta estima. Os advogados são conhecidos por certos excessos do verbo e abusos da verdade, quando não por genuína verborreia. Pois bem, o Filho Encarnação está sempre calado. De todos os advogados que conheço, é o advogado que mais bem fala calado.
São, pois, quatro, as diferenças entre o magistrado Y e o Papá Encarnação.
A primeira é que o magistrado Y não traz o filho atrelado.
A segunda é que o magistrado Y é um funcionário público e o Papá Encarnação pertence a uma firma privada. Só pegar na caneta já é um penoso trabalho para o magistrado Y, que só escreveu 5 páginas em defesa do juiz, ao passo que o Papá Encarnação escreveu 12 (doze).
A terceira é que o Papá Encarnação é dado a salamaleques ao passo que o magistrado Y é comparativamente mais sóbrio. O Papá Encarnação fala em "doutos acórdãos", em "Exmo. Senhor Desembargador Relator" e outras coisas do género, enquanto o magistrado Y é mais linear, só fala em "acórdãos" e em "Senhor Desembargador".
A quarta é que o magistrado Y faz batota a partir da quinta linha do seu documento, e estende-a depois ao longo das suas cinco páginas, ao passo que o Papá Encarnação faz a batota logo a partir da quarta linha e estende-a ao longo das suas doze páginas e dos seus 48 (quarenta e oito) parágrafos.
A única semelhança é que são ambos batoteiros.
Diz assim o Papá Encarnação e o seu rebento, logo a abrir:
CUATRECASAS, GONÇALVES PEREIRA & ASSOCIADOS, RL e PAULO ARTUR DOS SANTOS CASTRO DE CAMPOS RANGEL, Assistentes nos autos supra indicados, notificadas que foram para o efeito, vêm exercer o seu direito ao contraditório face ao pedido de arguição de nulidade apresentado pelo Arguido nos seguintes termos:
1- O Arguido funda a sua arguição de nulidade do douto Acórdão proferido em suposta
violação do disposto no artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem.
2- Entendendo o Arguido que tal violação resulta da existência de motivo, sério e grave,
adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Exmo. Senhor
Desembargador Relator.
3- Ora, o Código de Processo Penal prevê o instituto da recusa – cfr. artigo 43º e seguintes
do CPP – através do qual o Arguido poderia ter requerido o afastamento do juiz caso
entendesse, como agora parece entender, que ocorria risco de ser considerada
suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua
imparcialidade.
Quer dizer, nos três primeiros parágrafos, os Encarnações fazem aquele passe de mágica que consiste em transferir a discussão da lei que vale no país quando está em causa a imparcialidade de um tribunal - que é o artigo 6º da CEDH e a sua jurisprudência - para a lei que valia na sua Província do Douro Litoral, há 41 anos atrás, antes de ela aderir à CEDH em 1978, e que agora é letra morta - o artigo 43º e seguintes do Código do Processo Penal e respectiva jurisprudência.
E depois, tal pai tal filho, vão ambos por ali fora de mãos dadas ao longo das 12 páginas e dos 48 parágrafos a falar de coisas esquisitíssimas como "motivos graves e sérios" e outros cadáveres jurídicos que já estão a fazer tijolo há quase meio século, mas que eles fazem ressuscitar como se ainda hoje estivessem vivos e reluzentes.
Se o assunto um dia subir ao Tribunal mais elevado que tem competência para o julgar e que faz a jurisprudência a seu respeito - que é o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - ninguém, lá em Estrasburgo, excepção feita, talvez, ao representante português, conhecerá a lei que valia, até 1978, na Província do Douro Litoral onde nasceram e ainda hoje vivem os advogados Encarnações. E todos lá vão dizer, como eu digo aqui há meses, que os Encarnações são uns advogados de província.
Depois de tanto falarem em "motivos graves e sérios" e de tanto ponderarem a gravidade e a seriedade dos motivos, chegam ao parágrafo 47, que é o penúltimo, e escrevem a única coisa juridicamente relevante de todo aquele arrazoado, que é o facto de eu estar mesmo a pedir um outro processo por difamação, agora interposto por um órgão de soberania:
"47- Grave e sério é alguém, como o Arguido, permitir-se pôr em causa a imparcialidade e
brio profissional de um Magistrado Judicial, imputando-lhe ser “amigo do Assistente”,
bem sabendo que nenhuma relação de amizade existe".
Ao ler este parágrafo, eu recordei um episódio que tinha ocorrido no final de uma sessão do meu julgamento de primeira instância no tribunal de Matosinhos. Eu estava cá fora a falar com um jornalista que também era jurista. Os jornalistas são as pessoas mais visadas em processos por difamação como este. Eu estava a invocar-lhe a jurisprudência do TEDH e a minha certeza de que seria absolvido.
Ele interrompeu-me e disse, olhando de soslaio para o edifício do tribunal.
-Eu sei … eu sei… mas não se admire se for condenado aqui… porque esta é a malta do respeitinho...
Pois, a malta do respeitinho tem, em primeiro lugar, de se dar ao respeito. Caso contrário, vai ficar sem respeitinho nenhum.
(Continua)
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