13 dezembro 2022

Um juiz do Supremo (173)

 (Continuação daqui)



173. A tradição democrática


Entre todos os críticos do sistema de justiça em Portugal nos últimos 50 anos, o mais vocal e aquele que mais pugnou por uma reforma democrática da justiça foi, na minha opinião, e  a grande distância de todos os outros, o ex-Bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto. É justo prestar-lhe essa homenagem.

Naturalmente, António Marinho e Pinto, ao denunciar um caso de corrupção envolvendo o juiz Marcolino, foi alvo do terrorismo judicial do juiz e do seu sentimento de impunidade (cf. aqui).

Existem várias teses que Marinho e Pinto afirmou nas suas múltiplas intervenções públicas, explícita ou implicitamente, e que eu subscrevo na totalidade. A primeira e a mais importante de todas é que o principal problema da democracia portuguesa está na justiça (cf. aqui), uma conclusão que, pela mesma altura, era reiterada num estudo da SEDES (cf. aqui), que permanece actual até hoje. 

Na realidade, a democracia é, em primeiro lugar, acerca da justiça.  Naquele que é o primeiro documento da tradição democrática e constitucional do Ocidente - a Magna Carta -, um grupo de barões dirigiu-se ao rei e traçou uma linha vermelha no chão referente a certos abusos ou injustiças que ele não podia cometer:

"A Carta prometia a proteção dos direitos da igreja, proteção contra prisão ilegal, acesso à justiça rápida e, mais importante, limitações de impostos e outros pagamentos feudais à Coroa, pois exigia que os nobres concordassem com instituição de novos impostos" (cf. aqui).

Foi o princípio de uma longa tradição que iria disseminar o poder absoluto do rei, não somente pelos nobres, mas por todos os cidadãos, dando lugar à moderna democracia liberal. Esta tradição possui dois elementos cruciais.

O primeiro - não é de mais enfatizar - é que é uma tradição acerca da justiça, que visa prevenir injustiças, os abusos de poder por parte dos poderosos sobre os outros. 

A segunda, na linha da anterior, é a de pôr isso por escrito, dando lugar à ideia moderna de Constituição, um documento que serve para limitar os poderes dos poderosos, designadamente daqueles que possuem poderes de Estado. 

A Constituição americana viria  dar seguimento a esta tradição britânica, como no exemplo da Primeira Emenda, recentemente citada (cf. aqui), que proíbe o Congresso de fazer leis que restrinjam certas liberdades dos cidadãos, como a liberdade de expressão e de religião.

Em Portugal, tudo isto foi interpretado ao contrário. A Constituição portuguesa é, em primeiro lugar, não acerca de justiça, mas - reflectindo a sua inspiração marxista - acerca de economia,  acerca de questões económicas dos cidadãos (emprego, saúde, reforma, educação) que o Estado tem de resolver. O resultado é que, em lugar de restringir os poderes do Estado, confere mais poderes ao Estado. E os poderosos, em lugar de terem os seus poderes restringidos pela lei, usam e abusam desses poderes nas suas relações com os cidadãos.

É preciso dizer que, num país com verdadeira tradição democrática, o juiz Marcolino - investido com o poder mais importante da democracia, que é o poder judicial, que ele usa para abusar e perseguir pessoas, enriquecer ilicitamente e cometer crimes de toda a espécie  - seria considerado um vulgar criminoso e estaria hoje na prisão. Porém, em Portugal, onde a tradição democrática está pervertida, ele é  juiz do Supremo.


(Continua acolá)

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