22 novembro 2022

Um juiz do Supremo (112)

(Continuação daqui)




112. Os amigos de Lagarelhos

Armando Vara é o primeiro político português a ser condenado por tráfico de influências. Ele agenciava contratos para amigos do PS, usando a sua influência política, e pelos quais cobrava uma comissão.

O crime de tráfico de influências está previsto no artº 335º do Código Penal (cf. aqui) e ocorre quando alguém usa a sua influência junto de uma entidade pública (v.g., empresa pública, tribunal, câmara municipal) para dar a alguém  ou receber de alguém um benefício patrimonial ou não patrimonial. A tentativa é igualmente punível.

Armando Vara foi condenado em primeira instância pelo Tribunal de Aveiro a cinco anos de prisão efectiva. O recurso foi para o Tribunal da Relação do Porto que tem duas secções criminais, a primeira presidida na altura pelo seu amigo de longa data e conterrâneo, juiz Francisco Marcolino. 

Armando Vara é natural de Lagarelhos (Vinhais, Bragança), aldeia onde o juiz Marcolino tem pelo menos mais um amigo distinto, que acabou igualmente na prisão, não por tráfico de influências, mas por tráfico de droga (cf. aqui).

Segundo a sequência elaborada pela revista Sábado (cf. aqui), o processo demorou nove meses a chegar ao TRP, devido à distância entre Aveiro e o Porto e às dificuldades de transportes que se faziam sentir na altura. E, por sorte - porque a distribuição dos processos é aleatória, para respeitar o princípio do juiz natural -, foi parar à primeira secção do TRP, a tal que era presidida na altura pelo juiz Marcolino.

Normalmente, um processo que dá entrada na Relação é distribuído a dois juízes, um que serve de relator e outro de adjunto. No caso de haver consenso entre os dois, essa é a decisão final. Não havendo consenso, é o juiz presidente da secção [no caso, o juiz Marcolino] que desempata. 

Ora um dos juízes, dentro da primeira secção, a quem o processo foi distribuído - eu ia escrever "pelo presidente da secção, juiz Marcolino", mas corrijo para "aleatoriamente" - foi o juiz José Carreto, que era vizinho de Armando Vara em Vinhais, Bragança. 

Quer dizer, o juiz Marcolino tinha preparado tudo para safar Armando Vara.

Porém, a atenção mediática que o processo mereceu e a pequenez de Bragança, onde toda a gente se conhece com o inevitável falatório popular que chegava ao Porto, não permitiu que o esquema fosse mais além.  Era demasiado óbvio e ostensivo o tráfico de influências por parte do juiz Marcolino. Ficou a tentativa. O juiz José Carreto primeiro, e o juiz Francisco Marcolino depois, foram obrigados a pedir escusa ao Supremo que, naturalmente, afastou ambos do processo.

Num acórdão de que foi relatora a juíza Paula Guerreiro, o TRP confirmou a pena de cinco anos de prisão efectiva para Armando Vara. Este recorreu, então, para o Tribunal Constitucional que não admitiu o recurso, e a sentença tornou-se efectiva. 

O processo voltou ao TRP para ser remetido ao Tribunal de Aveiro, a fim de ser emitido o respectivo mandato de detenção. Porém, com a lentidão possível, e só depois de considerável pressão mediática, é  que o processo saiu da primeira secção criminal do TRP para o Tribunal de Aveiro e, ainda assim,  amputado de elementos cruciais para a emissão do mandato de detenção.

No fim, entre o momento em que o processo entrou pela primeira vez no Tribunal de Relação do Porto e o momento em que, sob pressão do Ministério Público, os últimos elementos do processo saíram da primeira secção criminal do TRP e chegaram ao Tribunal de Aveiro, decorreram três anos e meio.

O juiz Marcolino comportou-se como um verdadeiro amigo, um leal conterrâneo e correlegionário de Armando Vara. Fez tudo o que podia, usando a sua influência de presidente da primeira secção criminal do TRP, para o safar. Não conseguindo, fez tudo o que podia, usando e abusando dessa mesma influência, para diferir tanto quanto podia a entrada de Armando Vara na prisão, e aqui conseguiu alguma coisa de substancial. 

Diz o povo que "Quem dá o que pode a mais não é obrigado", e o juiz Marcolino deu tudo o que podia. A tal ponto que deveria ter feito companhia a Armando Vara na prisão pelo crime de tráfico de influências.


(Continua acolá)

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