25 junho 2022

Um sindicato do crime (2)

(Continuação daqui)


2. Corporações de criminosos


Aquilo que mais incomoda a Ordem dos Advogados na proposta de lei do PS sobre as ordens profissionais é a designação de pessoas da sociedade civil (v.g., universidades) para fazerem parte do seu Conselho Superior, que é o órgão de disciplina da Ordem (cf. aqui). 

As ordens profissionais nasceram ligadas às chamadas profissões liberais, como os médicos, os advogados e os engenheiros. As profissões liberais são as profissões de prática individual em que o profissional é ao mesmo tempo patrão de si próprio. Não tendo de prestar contas a ninguém, e dispondo de um estatuto claramente superior à média na comunidade, estes profissionais eram frequentemente aqueles cujas vozes se erguiam contra os abusos de poder do Estado autoritário. 

Nas sociedades autoritárias do passado (v.g., monarquia absoluta) em que nasceram as corporações e, mais tarde, as ordens profissionais, os profissionais liberais foram frequentemente os que primeiro reclamaram pela moderna ideia de liberdade, expondo-se, em consequência, a toda a sorte de retaliações por parte do poder político. As ordens profissionais eram também, por isso, instituições de proteção mútua, onde os profissionais liberais se juntavam para se defenderem uns aos outros das investidas do poder político

Daí que, em retrospectiva, as ordens profissionais sejam ainda hoje vistas como enclaves de liberdade nas sociedades autoritárias e anti-democráticas do passado, uma visão que, em Portugal descreve razoavelmente a realidade até ao fim do Estado Novo. Homens como Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Álvaro Cunhal, para mencionar alguns dos principais opositores ao regime,  eram advogados.

Porém, com o advento da democracia, as profissões liberais entraram em declínio e mesmo a rainha das profissões liberais - a medicina - é hoje uma profissão cada vez menos liberal. Existem cada vez menos médicos em prática individual, a maioria são funcionários públicos ou empregados de grandes grupos privados da área da saúde. 

O mesmo acontece na advocacia, são cada vez menos os advogados em prática individual. A maioria são sócios ou empregados de empresas privadas de advocacia, nalguns casos, grandes empresas multinacionais facturando centenas de milhões de euros ao ano, como é o caso da multinacional da advocacia mais citada neste blogue - a espanhola Cuatrecasas, que tem a sua maior representação no estrangeiro em Portugal, é a segunda maior sociedade de advogados da Europa continental e factura 350 milhões de euros ao ano.

Curiosamente, a reputação desta grande sociedade multinacional vale muito pouco, em comparação - cerca de cinco mil euros, custas judiciais e juros incluídos.

Somente esta semana recebi os recibos relativos à indemnização que lhes paguei por lhes ter ofendido a reputação (cf. aqui). Embora os recibos tenham as datas em que foram feitos os pagamentos (o primeiro, há mais de um ano), só agora, depois de muita insistência do meu advogado, e de lhes ter feito sentir que, se não me enviassem os recibos, os denunciaria ao fisco, é que finalmente cederam (click nas imagens para as tornar mais nítidas).

(Esta cambada de analfabetos nem escrever sabe, talvez por isso tenham de roubar. Repare no texto do recibo: "Recebemos... relativa ao recebimento...". Ainda por cima, os trapalhões baralharam-se no montante do primeiro recibo que é de 4422 euros e não de 5850 euros, conforme se pode verificar: cf. aqui)

O processo corre agora os seus termos no TEDH (cf. aqui) que, com uma elevadíssima probabilidade, obrigará o Estado português a ressarcir-me destes e de outros pagamentos. Mas, não é de mais insistir, quem me vai ressarcir serão os contribuintes portugueses, não a Cuatrecasas, que ficará com o dinheiro para sempre.

O ponto a que pretendo chegar, é pois,  o seguinte. De uma instituição de proteção de homens livres, a Ordem dos Advogados passou a ser largamente um coio onde hoje se abrigam verdadeiras corporações de criminosos. É por isso que, no seu Conselho Superior, ela não quer lá "pessoas estranhas ao serviço".

(Continua)

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