(Continuação daqui)
3. Os fiscalistas de Saramago
A história que agora tenho para contar envolve um português e uma espanhola, e tem um final feliz, embora bastante insólito. O português é o escritor José Saramago e a espanhola é a sociedade de advogados Cuatrecasas.
José Saramago (1922-2010) era comunista, filiado no Partido Comunista e chegou mesmo a integrar as listas da CDU ao Parlamento Europeu (1999), embora em lugar não-elegível. Em 1993 mudou-se para Lanzarote, Espanha, quando um governante português proibiu a candidatura de um livro seu a um prémio literário.
Como se sabe, a ideologia comunista tem como objectivo último estabelecer a igualdade material entre todos os cidadãos, acabando com a distinção entre pobres e ricos. Para o efeito, usa o Estado como instrumento principal, o qual é suposto tributar fortemente os ricos para depois distribuir o resultado pelos pobres, seja em subvenções directas seja em serviços sociais gratuitos (v.g., educação, saúde).
Acontece que, em resultado da sua produção literária, Saramago, ele próprio, enriqueceu e, a partir daí, esqueceu-se do velho princípio comunista de tributar fortemente os ricos para dar aos pobres, e passou a fugir ao fisco. Até ao dia em que o fisco espanhol caiu sobre ele, reclamando impostos não pagos entre 1997 e 2000. (Saramago recebeu o Nobel em 1998 e os seus rendimentos terão subido em flecha a partir dessa data)
Terá sido nesta altura que Saramago contratou a Cuatrecasas. Ao contrário do que geralmente se pensa, as grandes sociedades de advogados não derivam os seus rendimentos principalmente da litigação em tribunal, mas daquilo que elas chamam "Fiscal". Trata-se do chamado planeamento fiscal que frequentemente resvala para evasão fiscal.
A primeira coisa que a Cuatrecasas terá feito foi obstaculizar o mais que pôde a inspecção do fisco espanhol à contabilidade pessoal de Saramago. A segunda foi argumentar perante as autoridades tributárias espanholas que Saramago tinha residência fiscal em Portugal, e não em Espanha e portanto não tinha de pagar impostos neste país.
Ninguém foi na conversa dos advogados da Cuatrecasas, sendo público e notório que Saramago vivia em Espanha desde 1993. Primeiro, o Tribunal Administrativo e Fiscal e depois a Audiência Nacional (equivalente ao nosso Tribunal da Relação), esta em 2010, condenaram Saramago ao pagamento de 700 mil euros ao fisco espanhol (cf. aqui).
A Cuatrecasas ainda tentou fazer passar a imagem na comunicação social portuguesa que Saramago não tinha pago os impostos em Espanha porque os tinha pago em Portugal (cf. aqui e aqui). Mas quem tivesse lido a sentença do tribunal espanhol não iria acreditar nesta patranha porque a sentença diz explicitamente que o fisco espanhol solicitou várias vezes a Saramago que fizesse prova de que tinha pago os impostos em Portugal, e ele nunca as apresentou:
"... a pesar de los intentos por parte del fisco español para que aportara información que demostrara que cumplió con sus obligaciones tributarias en el país luso, el escritor no aportó dicha información, según la sentencia de la Audiencia Nacional" (cf. aqui).
Saramago faleceu dois meses depois da decisão da Audiência Nacional e os seus herdeiros, sempre com a Cuatrecasas a representá-los, recorreram para o Tribunal Supremo. Em 2012, o Supremo, através da secção de Contencioso Administrativo, declarou a dívida anulada, sob um argumento que faria corar de vergonha qualquer pessoa decente (cf. aqui).
Em Espanha, as inspecções fiscais têm um prazo máximo de um ano. Depois de reconhecer que Saramago - quer dizer, os advogados da Cuatrecasas - fizeram tudo o que puderam para obstaculizar a inspecção e prolongá-la no tempo, o Supremo anulou a dívida sob o argumento de que o prazo de inspecção tinha sido excedido:
"En las sentencias (...) el Supremo reconoce que Saramago "adoptó una actitud claramente obstruccionista" con Hacienda" (cf. aqui).
É um caso em que o crime compensa. A Cuatrecasas é cúmplice de Saramago num crime de evasão fiscal, mas no fim, em lugar de serem ambos condenados em forma agravada, nada lhes acontece.
As conclusões a tirar desta história são as seguintes.
1. Saramago, quando ele próprio se tornou rico, fugia ao fisco. Morreu sem nunca pagar 700 mil euros ao fisco do país que o acolheu nos últimos 17 anos da sua vida, os melhores do ponto de vista financeiro.
2. Depois de condenado em primeira e segunda instâncias, a Cuatrecasas conseguiu o milagre de ver o Supremo, através da sua Secção de Contencioso Administrativo, anular a dívida. E isto, mesmo reconhecendo que o esgotamento do prazo da inspecção foi o resultado dos obstáculos que Saramago, - isto é, os advogados da Cuatrecasas - deliberadamente lhe colocaram.
A questão que fica por responder é a de saber como é que a Cuatrecasas consegue milagres desta grandeza.
Eu não sei ao certo, não é fácil explicar milagres. Mas posso levantar uma ponta do véu.
Parece ser prática da Cuatrecasas oferecer sociedade e empregos milionários aos juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Supremo de Espanha.
Alguns aceitam (cf. aqui).
Os outros devem sentir-se confortados. Quando estiverem aborrecidos de redigir sentenças na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Supremo, sabem que têm uma alternativa viável, e bastante mais compensadora.
(Continua)
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