(Continuação daqui)
XXIV. Conclusão
Depois de vários anos a discutir e a produzir decisões contraditórias sobre o assunto, o Tribunal Constitucional reuniu em Plenário no final de 2018 para resolver definitivamente a questão.
A questão era a de que a Lei 20/2013, que deu nova redacção ao artigo 400º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Penal, estabelecia que só eram recorríveis para o Supremo sentenças da Relação que implicassem cinco ou mais anos de prisão.
Esta Lei, em certas situações, chocava com o artigo 32º, nº 1 da Constituição, que consagra o direito ao recurso. As situações eram aquelas em que os arguidos, tendo sido absolvidos em primeira instância, fossem condenados inovadoramente na Relação em pena de prisão inferior a cinco anos ou em outra pena não privativa de liberdade (v.g., multa, prisão com pena suspensa, trabalho comunitário, etc.).
O resultado foi o acórdão 595/2018 (cf. aqui) que, em lugar de resolver o problema de vez, criou uma série de outros problemas e injustiças que duram até hoje. E isto foi assim porque dos 13 "juízes" que fazem parte do Plenário do Tribunal Constitucional, a maioria não são juízes, mas meros comissários políticos, e entre os juízes que lá se encontram - eles próprios também de nomeação política - a maioria não são juízes com a experiência e qualificação adequadas para fazer jurisprudência - como os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça - mas juízes de tribunais inferiores.
Como decorre do acórdão, no Plenário não se invocou um único princípio de justiça para dar solução ao problema em análise, com uma excepção apenas. Foi na declaração de voto do presidente, Professor Costa Andrade que, tendo subjacente o princípio da hierarquia das leis, argumentou que a Lei 20/2013 era radicalmente inconstitucional.
O Tribunal Constitucional é reservado a juristas, isto é, a licenciados em Direito, uma palavra que, do latim "directus", significa regra ou norma. Portanto, todos os "juízes" do Tribunal Constitucional são especialistas em regras, não em justiça. Daí que a discussão que o acórdão exprime tenha sido uma discussão sobre regras, própria de burocratas do espírito, e não uma discussão sobre justiça.
O resultado, como seria de esperar, foi uma arbitrariedade, uma decisão que tanto poderia ser assim, como de outra maneira. E a decisão foi a de considerar inconstitucional a Lei 20/2013 quando a condenação inovadora na Relação fosse em pena de prisão efectiva, mas considerá-la constitucional quando a pena fosse não-privativa de liberdade (v.g., prisão com pena suspensa, multa, trabalho comunitário).
Olhada do ponto de vista do direito constitucional ao recurso, a decisão mantinha este direito a quem tivesse sido condenado inovadoramente na Relação em pena de prisão efectiva, mas negava-o a quem tivesse sido condenado em pena não-privativa da liberdade. E foi assim, segundo esta "jurisprudência", que o Tribunal Constitucional passou a decidir os casos que lhe apareciam envolvendo esta questão.
Mas não por muito tempo. Meses depois, dava entrada no Tribunal Constitucional o célebre caso dos guardas da GNR. Tinham sido absolvidos em primeira instância, mas condenados na Relação a multas e indemnizações ao juiz Neto de Moura, que tinham autuado em 2012, em Loures, por conduzir um carro sem matrícula. Na altura da condenação em 2018, o comando da GNR, apoiado pelas outras forças de segurança, fez conhecer um comunicado contendo um protesto veemente contra as autoridades judiciais do país e contra o próprio Governo.
À luz do acórdão 595/2018 que constituía a "jurisprudência" do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, os guardas não tinham direito a recorrer para o Supremo, e ficavam condenados a cumprir a pena que lhes foi imposta na Relação.
O risco de uma sublevação das forças de segurança, com a GNR à frente, passou a pairar no ar.
Foi então que o presidente do Tribunal Constitucional, Professor Costa Andrade, fez aprovar um acórdão na 2ª Secção do Tribunal a que presidia por inerência - um verdadeiro acórdão-pirata (cf. aqui) - segundo o qual, afinal, os guardas tinham direito ao recurso para o Supremo, isto é, a Lei 20/2013 era inconstitucional mesmo para penas de multa.
O acórdão 31/2020 (cf. aqui) fez manchetes nos jornais e as instituições governamentais e de justiça puderam respirar de alívio - estava afastado o risco de uma sublevação das forças de segurança.
Mas só temporariamente. É que, quando um acórdão contraria outro, como era o caso, a Lei do Tribunal Constitucional manda que o segundo seja submetido ao Plenário. Ora, era claro, mesmo para o observador externo, que em vista das suas posições anteriores, a esmagadora maioria dos juízes chumbaria em Plenário o acórdão 31/2020.
O Tribunal Constitucional, com aquela sua jurisprudência de cordel, feita por marçanos da judicatura, tinha arranjado um trinta e um.
Em breve o trinta e um seria elevado à potência. Praticamente em simultâneo com a publicação do acórdão 31/2020 de 16 de Janeiro dava entrada no Tribunal Constitucional o caso do cidadão A que, tal como os guardas da GNR, tinha sido absolvido em primeira instância (de difamação a um político), mas condenado inovadoramente na Relação a uma pena de multa (5 mil euros mais 10 mil de indemnização ao político).
O caso vinha no seguimento de uma obra que o cidadão A estava a realizar à frente de uma associação humanitária construindo, por via mecenática, a ala pediátrica de um grande hospital do país, a pedido da administração, onde, havia sete anos, as crianças estavam internadas em contentores metálicos em que chovia lá dentro, faltava o aquecimento no inverno e havia pragas de moscas no verão.
A obra fazia parecer mal - ou assim eles o entenderam - os dois partidos que há mais de quarenta anos governam o país e controlam o sistema de justiça e, em breve, os dois partidos elegeram o cidadão A como seu grande inimigo. E isto foi assim, em parte, porque também as duas construtoras que se ofereceram para fazer a obra com grandes contribuições mecenáticas, não eram aprovadas por nenhum dos partidos, os quais têm o mercado das obras públicas dividido entre si e com construtoras de preferência.
Primeiro, foi o PSD que procurou parar a obra, através de uma sociedade de advogados (Cuatrecasas) que tinha à frente o referido político, de apelido Rangel. Depois - estava-se no final de 2015 - foi o PS que, tendo chegado ao Governo com a geringonça, parou a obra definitivamente.
O cidadão A respondeu então criminalmente por ofensas ao político Rangel e à sociedade de advogados por causa de um comentário televisivo (cf. aqui). Logo na primeira instância eram claros os sinais de manipulação da justiça com vista a condenar o cidadão A. Nada daquilo era crime à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que é a lei suprema em Portugal nesta matéria, e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
No Tribunal de primeira instância de Matosinhos, o cidadão A foi absolvido das ofensas ao político Rangel, mas condenado pelas ofensas à sociedade de advogados. O caso foi para a Relação do Porto e foi parar a uma secção presidida por um juiz que é militante do partido do Governo (PS), e até já foi candidato deste partido à Câmara de Bragança. Dentro da secção, o caso foi adjudicado a dois juízes, um dos quais era colega do político Rangel numa associação de beneficência que se financia através de dinheiros do Estado. Na altura, era o PSD do político Rangel que tinha estado no Governo a mandar no Estado e distribuir os dinheiros do Estado.
Num voto dividido, em que o juiz amigo do político Rangel e o juiz-presidente da secção votaram a favor, e o outra juiz - na realidade, uma juíza - votou contra, invocando a CEDH e a jurisprudência do TEDH, a Relação do Porto condenou inovadoramente o cidadão A por difamação agravada ao político Rangel (5 mil euros de multa e 10 mil de indemnização) e confirmou a condenação de primeira instância por ofensas à sociedade de advogados de que ele era director (4 mil euros de multa e 5 mil de indemnização).
Foi pela condenação inovadora da Relação relativamente ao político Rangel que o cidadão A se dirigiu ao Tribunal Constitucional, pedindo para exercer o direito ao recurso para o Supremo. E no seu recurso, feito em Janeiro de 2020, invocou o acórdão 31/2020 que tinha sido publicado nesse mesmo mês relativo aos guardas da GNR.
O recurso do cidadão A foi parar à única secção do Tribunal Constitucional que não era presidida pelo presidente do Tribunal, Professor Costa Andrade, o qual, como se vira no acórdão 31/2020 da 1ª Secção, era favorável à pretensão do cidadão A. Mas não apenas isso. O processo foi parar às mãos de uma juíza relatora que tinha o mesmo apelido do político Rangel do PSD e, como se tal não bastasse, uma "juíza" que tinha sido nomeada para o Tribunal Constitucional pelo próprio PSD.
No acórdão 646/2020 de 16 de Novembro da 3ª Secção (cf. aqui), redigido pela "juíza" Rangel, o Tribunal Constitucional negou ao cidadão A o direito ao recurso que o acórdão 31/2020 da 2ª Secção reconhecera aos guardas da GNR. A "juíza" Rangel faz uma breve menção ao acórdão 31/2020 dos guardas da GNR, que o cidadão A interpretou assim: "Isso não interessa para nada, os guardas da GNR podem vir a ser ilibados, mas tu serás condenado".
O cidadão A recorreu então do acórdão 646/2020 para o Plenário ao abrigo da Lei do Tribunal Constitucional (artº 79º- D), segundo a qual, quando existe oposição entre os acórdãos de duas secções diferentes a respeito da mesma norma, cabe recurso para o Plenário. Estavam nesta situação os acórdãos 31/2020 da 2ª Secção e o acórdão 646/2020 da 3ª.
Foi, então, que num despacho de 9 de Dezembro, a juíza Rangel produziu o célebre argumento-mágico. Não, não havia contradição nenhuma entre os dois acórdãos porque, não tendo ainda o acórdão 31/2020 transitado em julgado no Plenário, ele pura e simplesmente não existia. Não pode haver contradição entre o acórdão 646/2020 e um outro (31/2020) que não existe. O recurso foi indeferido.
Por esta altura, o acórdão 31/2020 tinha quase um ano de idade e ainda não tinha sido levado ao Plenário.
O cidadão A apresentou, então, um derradeiro recurso que era uma verdadeira petição de justiça. Em nome da boa administração da justiça - isto é, em nome da igualdade de tratamento perante a lei -, pedia ao Tribunal Constitucional que congelasse a decisão do acórdão 646/2020 até que o Plenário apreciasse o acórdão 31/2020 relativo aos guardas da GNR, e lhe aplicasse depois a ele a mesma solução que decidisse para os guardas. O cidadão A pedia aquilo a que os juristas chamam a suspensão da instância.
A resposta, redigida pela "juíza" Rangel, com todos os membros do Tribunal Constitucional assinando por baixo, veio no acórdão 229/2020 de 21 de Abril (cf. aqui) e era negativa. O cidadão A argumentava que se sentia prejudicado face aos guardas da GNR porque o Tribunal Constitucional reconhecera aos guardas no acórdão 31/2020 um direito que lhe negara a ele no acórdão 646/2020 - o direito ao recurso para o Supremo.
A "juíza" Rangel respondeu ao cidadão A que não tinha nada que se sentir prejudicado e o argumento que apresentava era ainda o argumento-mágico. Como o acórdão 31/2020 ainda não tinha transitado em julgado no Plenário, esse acórdão não existia e, portanto, não havia nada que o Tribunal Constitucional tivesse reconhecido aos guardas da GNR que tivesse negado ao cidadão A.
O Tribunal Constitucional tinha-se reunido em Plenário para negar ao cidadão A a suspensão da instância. Levar o acórdão 31/2020 ao Plenário é que nada.
No final do processo, o cidadão A ficou condenado a cumprir a pena que lhe foi imposta na Relação, mas os guardas da GNR não estão condenados a nada enquanto o acórdão 31/2020 não for levado ao Plenário e aí for revogado. É assim que funciona um Tribunal político e é assim que discrimina entre os cidadãos, e faz perseguição política dando a aparência de estar a fazer justiça.
E por que é que o acórdão 31/2020 não é levado ao Plenário?
Porque a jurisprudência de cordel do Tribunal Constitucional, contida no acórdão 595/2018, feita por marçanos da judicatura ao serviço dos dois grandes partidos do sistema, se for aplicada aos guardas da GNR, corre o risco de gerar uma sublevação das forças de segurança que pode acabar com o Governo e com o próprio Tribunal Constitucional.
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