(Continuação daqui)
III. Um acórdão-pirata
Pôr marçanos da judicatura, e não verdadeiros juízes, a fazer jurisprudência normalmente dá maus resultados. E foi o que aconteceu com a jurisprudência de cordel consagrada no acórdão 595/2018 do Tribunal Constitucional (cf. aqui).
A jurisprudência é de cordel porque sonega a um conjunto de cidadãos - todos aqueles que são condenados inovadoramente na Relação a uma pena não privativa da liberdade (v.g., multa, trabalho comunitário) - um direito que, por ser constitucional, é universal e aberto a todos - o direito ao recurso.
Em nome da eficiência económica - reduzir a carga de trabalho que impende sobre o Supremo -, o acórdão sacrifica um direito humano fundamental, que é o direito ao recurso, parte do direito fundamental à defesa em processo penal. O mesmo argumento pode um dia levar o Tribunal Constitucional a não garantir o direito à vida dos velhos, em nome de reduzir os encargos da segurança social.
O presidente do Tribunal, Professor Costa Andrade, ele próprio já na terceira idade, na sua declaração de voto, ainda alertou os seus pares que aquilo não se podia fazer, que todas as pessoas têm direito ao recurso para o Supremo quando são inovadoramente condenadas na Relação, e não apenas aquelas que são condenadas em prisão, tanto mais que a própria Constituição no seu artº 32º não faz distinção quanto à natureza das penas. Mas sem efeito.
À luz de tão brilhante jurisprudência, os guardas da GNR deviam conformar-se com a condenação que lhes foi imposta pela Relação, e conformar-se também que lhes fosse negado o direito constitucional ao recurso. Deviam conformar-se e preparar-se, portanto, para pagar uma multa ao Estado e uma indemnização ao juiz Neto de Moura.
Quem não se conformou foi o Comando da GNR que imediatamente teve o apoio da PSP e das outras forças de segurança. Podia lá ser os seus homens serem condenados pelo exercício das suas funções - multando um automobilista que conduzia um carro sem matrícula -, enquanto o automobilista, que entretanto se mudara para o Porto, redigia agora sentenças, aliás muito cristãs, no Tribunal da Relação (cf. aqui).
Não podia ser. E o comandante da GNR anunciou que iria protestar e escrever às autoridades judiciais e ao Governo (cf. aqui)
Eu ponho-me na posição dele e sei o que faria em defesa dos meus homens. Escreveria uma carta muito contundente que enviaria ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao presidente do Tribunal Constitucional e ainda à ministra da Justiça, com cópia para o primeiro ministro, com uma mensagem implícita: "Resolvam lá isto senão há chatice".
E é o que ele deve ter feito.
Dadas as circunstâncias, a fava calhou ao presidente do Tribunal Constitucional. Em face da resposta que receberam do Supremo, os guardas da GNR recorreram para o Tribunal Constitucional a pedir que a jurisprudência do acórdão 595/2018 fosse alterada, restituindo-lhes o direito constitucional ao recurso, e permitindo o recurso para o Supremo mesmo quando a pena imposta na Relação fosse de multa, como era o caso.
O Professor Manuel Costa Andrade terá chamado o processo a si, que foi parar ("aleatoriamente" para respeitar o princípio do juiz natural) à 2ª secção, também presidida por ele.
Naquilo que, lendo com atenção, parece, às vezes, ser um acórdão furtivo, senão mesmo um acórdão-pirata, em que é relatora a "juíza" Mariana Canotilho - significativamente, uma "juíza" nomeada pelo partido do Governo -, o acórdão 31/2020 (cf. aqui) da 2ª secção do Tribunal Constitucional dá satisfação à pretensão dos guardas da GNR. Apropriadamente, ele põe em primeiro lugar o direito constitucional ao recurso fazendo-o prevalecer sobre a carga de trabalho adicional que isso dá ao Supremo.
A decisão foi difícil, um empate 2-2, e valeu o voto de qualidade do presidente Costa Andrade.
O acórdão fez notícia nos jornais (cf. aqui). E, nesse dia, devem ter respirado de alívio, para além do presidente do Constitucional, também os presidentes do Supremo e da Relação de Lisboa, e ainda a ministra da Justiça e o primeiro-ministro.
Infelizmente, o caso não terminava aqui. O acórdão 31/2020 contrariava a jurisprudência de cordel estabelecida no acórdão 595/2018 e, neste caso, a Lei do Tribunal Constitucional, obriga a que o Ministério Público recorra para o Plenário deste Tribunal.
O Professor Costa Andrade tinha safado temporariamente as autoridades judiciais e o Governo de uma enrascada, mas ficava com uma batata quente nas mãos. Ele teria de levar o acórdão 31/2020 ao Plenário, onde sabia que não iria encontrar uma maioria de "juízes" que lhe fossem favoráveis.
Eu suspeito que, em parte, foi por causa desta batata quente, que o Professor Costa Andrade renunciou recentemente, não apenas a presidente do Tribunal Constitucional, mas também a juiz deste Tribunal, a meio do seu mandato (cf. aqui).
(Continua)
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