(Continuação daqui)
XXIII. O Quartel do Carmo
Na sua adolescência, no final dos anos sessenta, o cidadão A estudou na Escola Comercial Veiga Beirão, uma escola do ensino técnico do Estado Novo, hoje transformada em escola do ensino secundário. A Escola ficava no Largo do Carmo, em Lisboa, mesmo junto ao Quartel da GNR.
As instalações da Escola, incluindo o pátio, eram muito exíguas e, por isso, nos intervalos das aulas, os estudantes faziam do Largo do Carmo o verdadeiro pátio onde se divertiam, conversavam ou iam comer um bolo à pastelaria da esquina. Como muitas escolas do Estado Novo, a Veiga Beirão era reservada a rapazes.
O cidadão A não se recorda de alguma vez ter havido problemas com os estudantes. Mas, mesmo que houvesse, a competência policial no Largo do Carmo pertencia à PSP, e não à GNR. De maneira que, durante quatro anos, três para fazer o Curso Comercial e mais um de Secção Preparatória de acesso ao Instituto Comercial de Lisboa, o cidadão A recorda ainda hoje com simpatia a vizinhança do Quartel do Carmo e da GNR, a sentinela à porta, e a constante entrada e saída de militares pertencentes a esta força de segurança.
Até que, poucos anos depois de lá ter saído, então já estudante na Universidade do Porto, o cidadão A acordou uma manhã a ver pela televisão as forças militares do capitão Salgueiro Maia, com as suas chaimites, a sitiarem o Quartel do Carmo e as forças da GNR, e a dispararem tiros de metralhadora contra a fachada do edifício.
O cidadão A sentiu um aperto no coração e ficou ligado ao écran para resto da manhã. Estava-lhe a custar ver o Quartel do Carmo ser tratado daquela maneira e, mais ainda, os militares da GNR que, ao longo de vários anos, ele vira sempre como pacatos vizinhos seus e dos seus colegas da Escola Veiga Beirão.
Mas a realidade era essa. O Quartel do Carmo e a GNR viriam a ficar para a história como os símbolos da capitulação do antigo regime. Foi aí que, poucas horas depois, a força da GNR capitulou e o presidente do conselho, Marcello Caetano, entregou o poder às forças revolucionárias, na pessoa do General Spínola.
Deve ser uma mágoa que ainda hoje pesa na história da GNR - os seus militares não terem defendido aqueles a quem, pela natureza da instituição, haviam prestado juramento. E, talvez por isso mesmo, é bem possível que tenha ficado um certo ressentimento na instituição em relação ao regime que nasceu nessa manhã de 25 de Abril de 1974.
Provavelmente por virtude destas memórias, o cidadão A teve recentemente um sonho, que terminou em pesadelo. Ele sonhou que, finalmente, o Tribunal Constitucional tinha levado ao Plenário o acórdão 31/2020 relativo aos guardas da GNR.
No Plenário, o acórdão foi chumbado porque, tal qual se esperava, a maioria esmagadora dos "juízes" votou contra ele, mantendo-se coerentes com posições anteriores sobre a mesma matéria e que, segundo eles, constituíam "jurisprudência" do Tribunal Constitucional.
Porém, o problema estava precisamente aí, na "jurisprudência" - continuava o cidadão A nos seus sonhos -, vendo-se a si próprio já no meio dos juízes em Plenário. O problema estava - dizia agora enfaticamente o cidadão A aos juízes - em eles andarem a fazer "jurisprudência", na sua maioria não sendo juízes, muito menos juízes-conselheiros, mas meros marçanos da judicatura.
Poucos minutos depois da decisão do Plenário, os jornais online já a reportavam e, no dia seguinte, a notícia fazia as primeiras páginas de todos os jornais. O Tribunal Constitucional, em Plenário, fazendo valer a sua "jurisprudência", dava o dito por não-dito.
Em Janeiro de 2020, pelo acórdão 31/2020, o Tribunal Constitucional tinha dito que os guardas da GNR podiam recorrer para o Supremo. Mas, agora, em Plenário, o Tribunal Constitucional vinha dizer que, afinal, no seu conflito com o juiz Neto de Moura, os guardas da GNR já não podiam recorrer para o Supremo.
Em consequência, estavam condenados a cumprir a sentença que lhes foi fixada na Relação, pagando as multas ao Estado e as indemnizações ao juiz Neto de Moura (que eles haviam multado em 2012 por conduzir um carro sem matrícula em Loures).
Os jornais reportavam ainda que, tendo tentado contactar o comando da GNR, e também os das outras forças de segurança, para comentarem a decisão, não tinham conseguido obter resposta até ao fecho das edições. Acrescentavam, porém, que, quando em 2018 os militares da GNR foram condenados na Relação, o comando emitiu um veemente comunicado de protesto, sendo na altura apoiado pela PSP e pelo SEF.
Foi neste momento que o sonho do cidadão A gradualmente se transformou em pesadelo. Como há 47 anos atrás, ele via também agora uma força militar a sitiar um edifício oficial e também a disparar tiros contra a sua frontaria. Ele via ainda, também, muito povo e também via chaimites. Mas havia duas diferenças em relação ao que ele vira pela televisão quase meio século antes no Largo do Carmo.
As diferenças eram, primeira, que a GNR desta vez não era a força sitiada, mas a força sitiante; e, segunda, que o edifício sitiado não era o Quartel do Carmo, mas o Palácio Ratton.
Foi neste momento que o cidadão A acordou em pânico.
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