(Continuação daqui)
11. A missão
Eu estou agora em condições de dar resposta a uma questão que deixei em aberto noutro lugar acerca da lentidão da justiça em Portugal e da instrução de processos-crime que demoram décadas a resolver na justiça portuguesa (cf. aqui).
A questão foi suscitada por opiniões emitidas pelos ex-procuradores do Ministério Público, Euclides Dâmaso e Maria José Morgado, num programa de rádio, segundo as quais é provável que os casos Marquês e BES tenham ainda mais 20 anos pela frente até serem encerrados.
Ora - argumentei eu na altura -, quem faz a instrução de processos que têm esta duração não está preocupado em fazer justiça. Pelo contrário, está a cometer uma cruel e deliberada injustiça, um verdadeiro crime, condenando prematuramente à morte social, e para o resto das suas vidas, pessoas que nunca terão a possibilidade de se reabilitar nem de reaver os seus bens entretanto arrestados.
É que daqui por 20 anos é altamente improvável que os principais arguidos do caso BES, com Ricardo Salgado à cabeça, ainda estejam vivos (um deles, o contabilista José Castella, já faleceu entretanto). E, no caso Marquês, embora os principais arguidos - José Sócrates e Carlos Santos Silva - sejam mais novos, daqui por 20 anos, se forem vivos, terão cerca de 85 anos de idade.
A questão que, então, coloquei foi a seguinte: Se o propósito dos procuradores do Ministério Público que fazem a instrução destes processos que não têm fim, não é fazer justiça, mas antes, deliberadamente, cometer uma cruel injustiça, o que é que os move?
A lentidão da justiça - que levou o TEDH nos últimos 30 anos a condenar Portugal centena e meia de vezes por demoras na justiça - não é um facto novo da modernidade democrática do país, mas uma verdadeira tradição.
É necessário recuar vários séculos para encontrar a confluência de factores que explicam a morosidade da justiça em Portugal. E um desses factores é, precisamente, a tradição inquisitorial do sistema de justiça.
Se a Inquisição, a pretexto da heresia, na realidade o que fazia era roubar dinheiro a pessoas inocentes - os chamados hereges: cristãos novos, protestantes, muçulmanos, livre-pensadores -, convinha então que os processos não tivessem fim para que os arguidos nunca pudessem provar a sua inocência e recuperar o património que lhes tinha sido arrestado, o qual acabava a reverter para a Coroa.
É essa mesma razão que hoje em dia dita a lentidão da justiça, especialmente nos processos envolvendo muito dinheiro, como a Operação Marquês e o caso BES. O património arrestado aos principais arguidos de um e de outro caso é considerável, ascendendo a muitos milhões de euros, e encontra-se hoje na posse do Estado português (cf. aqui e aqui).
Se estes processos se prolongarem indefinidamente no tempo e não tiverem fim antes da morte dos principais arguidos - caso em que eles terão morrido sem conseguirem provar a sua inocência -, todo esse património reverterá definitivamente a favor do Estado.
O Ministério Público terá, então, nesse dia, consumado a sua missão, que é a missão própria de um grande bando de ladrões ao serviço do Estado português.
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