02 novembro 2020

Um juiz à solta (II)

 (Continuação daqui)

"Ninguém pode servir a dois senhores" (Mt:6:24)

 

II. A Igreja a corromper a Justiça

O Estado português é um Estado laico. O Estado laico opõe-se ao Estado confessional que é aquele em que existe uma religião oficial (v.g., Irão, Portugal em tempos passados). Nos termos do artº 41º da Constituição (cf. aqui), existe uma separação entre o Estado e a religião, o Estado não se imiscui em questões religiosas, não promove ou se associa a qualquer religião, é neutral em relação a todas as religiões.

A laicidade do Estado tem em vista assegurar uma das mais importantes liberdades individuais, que é a liberdade religiosa. Foi da luta pela liberdade religiosa na Europa dos alvores da modernidade que emergiu o moderno direito à liberdade de expressão que é o direito fundador das democracias modernas.

Segue-se que nenhum representante dos poderes do Estado português - um ministro, um deputado, um juiz - pode associar-se institucionalmente a uma religião ou promover institucionalmente uma religião. Se o fizer, estabelece uma ligação entre o Estado e a religião que a Constituição não consente e, tratando-se de um juiz, corrompe a Justiça, pondo em causa a sua imparcialidade (e a sua independência).

Não obstante, no regime de roda livre em que alguns juízes têm vivido, é isto que faz o juiz Pedro Vaz Patto, que é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (cf. aqui), um organismo da Conferência Episcopal Portuguesa (cf. aqui), que é o órgão superior de governação da Igreja Católica em Portugal.

O que pensar se amanhã o juiz Vaz Patto fôr chamado a julgar uma questão entre o Estado e a Igreja, ou entre uma instituição católica (v.g., uma escola católica) e uma instituição não-católica (v.g., Ministério da Educação), ou simplesmente entre um católico assumido e um judeu assumido?

Presume-se que ele será tentado a decidir a favor de quem, da parte católica ou da parte não-católica (que é a questão da imparcialidade)?; e as suas lealdades vão para quem, para a Igreja Católica, de que é fiel seguidor, ou para o Estado e o povo português, que é quem lhe paga para ser juiz e em nome de quem ele é suposto julgar (que é a questão da independência)?

É esta dúvida que destrói a confiança dos cidadãos na Justiça e a corrompe. Pouco importa que os juízes proclamem corporativamente que são, por natureza, imparciais, como fez recentemente o chefe administrativo do juiz Vaz Patto, o presidente do Tribunal da Relação do Porto, juiz Ataíde das Neves, segundo o qual "o juiz é, por natureza e por vocação, íntegro, imparcial e isento no exercício da sua função de julgador" (cf. aqui). 

Para o juiz Ataíde das Neves, que parece ainda viver na Idade Média, uma época em que certos homens eram considerados deuses, os juízes não são tocados pelas pequenas fraquezas que tocam todos os seres humanos, como a tendência para favorecer os amigos e aqueles que lhes são próximos e queridos. Os juízes são uma casta superior, uma espécie de deuses, que nascem isentos destes pecadilhos.

A jurisprudência do TEDH, que é aquela que se aplica a Portugal em relação à imparcialidade dos juízes (cf. aqui), é muito mais simples, realista e certamente mais moderna. Diz essa jurisprudência, em suma, que a imparcialidade de um juiz fica comprometida quando ele se coloca numa posição em que, aos olhos do homem comum, suscita uma dúvida legítima acerca da sua imparcialidade. Homem comum e dúvida legítima são as duas expressões-chave desta jurisprudência que apropriadamente vê no juiz um homem, e não um deus.  

Por isso, o novo Código de Conduta dos juízes é taxativo no seu Artº 5º, nº 3, que vale a pena reproduzir:

3. Os magistrados judiciais abstêm-se de participar em actividades extrajudiciais susceptíveis de colocar em causa a sua imparcialidade e que contendam ou possam vir a contender com o exercício da sua função ou com a confiança do cidadão na independência e imparcialidade da sua decisão. (cf. aqui)

À luz do Código, portanto, a presidência por parte do juiz Vaz Patto de uma instituição ligada à Igreja Católica, como a CNJP,  que é porta-voz oficial dos bispos católicos, compromete a sua imparcialidade (e independência) como juiz e corrompe a Justiça. 

Mas este não é sequer o aspecto principal da situação. O juiz Vaz Patto aparece nesta situação apenas como o corruptor passivo. O corruptor activo é a própria Igreja Católica, na pessoa dos bispos portugueses.

É inaceitável que uma instituição, como a Igreja Católica, que passa  a vida a pregar a moral e a justiça aceite instrumentalizar a fé de um juiz para corromper a Justiça do seu país. A Igreja e o juiz Vaz Patto deviam conhecer melhor que ninguém a máxima cristã: "Ninguém pode servir a dois senhores" (Mt: 6:24), mas é isso que faz o juiz Vaz Patto e a Igreja acolhe de bom grado.

O que é que a Igreja Católica pretende aceitando esta situação, que o juiz Vaz Patto decida a seu favor e dos seus? Que absolva padres pedófilos? Que o juiz Vaz Patto trafique influências dentro dos tribunais portugueses para obter sentenças a favor da Igreja e dos seus fieis, como fazia o ex-juiz Rui Rangel em relação ao Benfica?

O juiz Pedro Vaz Patto está para a Igreja Católica como o ex-juiz Rui Rangel estava para o Benfica. O juiz Rui Rangel acabou mal, expulso da magistratura, e a credibilidade da Justiça acabou ainda pior. O que é que o Conselho Superior da Magistratura, agora que tem um Código de Conduta aprovado, está à espera para pôr o juiz Vaz Patto na ordem?

Estará à espera de outro escândalo?


(Continua)

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