07 outubro 2020

Cinco anos (11)

(Continuação daqui)


11. O rangelismo


Eu tenho mantido o meu case-study vivo com um duplo propósito. Primeiro, tratando-se de um caso judicial bastante simples, compreender e dar a compreender aos leitores deste blogue como funciona o nosso sistema de justiça. Segundo, identificar os focos de corrupção existentes no nosso sistema de justiça pois considero que no conjunto dos três poderes do Estado - o executivo, o legislativo e o judicial -, a corrupção em Portugal está, em primeiro lugar, no poder judicial.

Desenvolvimentos recentes têm confirmado a minha convicção e o tema deste post é precisamente uma das formas de corrupção existentes dentro do poder judicial a que chamo rangelismo, uma designação derivada dos apelidos de duas figuras públicas - o juiz Rui Rangel e o eurodeputado Paulo Rangel.

O rangelismo é a forma de corrupção da justiça mediante a qual a distribuição dos processos judiciais nos tribunais é viciada por forma a atribuir um processo a um determinado juiz sabendo-se de antemão que ele produzirá uma sentença favorável a uma das partes (e desfavorável à outra).

Por outras palavras, o rangelismo é a batota na distribuição dos processos dentro dos tribunais, violando a aleatoriedade da distribuição e o  princípio do juiz natural e corrompendo a imparcialidade da justiça.

Um caso de rangelismo, e o mais mediático de todos, veio a público recentemente através de Operação Lex envolvendo o juiz Rui Rangel e o ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), juiz Vaz das Neves e reporta-se a um processo judicial em que são partes o juiz Rui Rangel e o Correio da Manhã (CM).

Em certa altura, o CM publicou uma notícia dizendo que o juiz Rui Rangel ia ser julgado por causa de um calote a um clínica de estética. O juiz Rui Rangel considerou a palavra calote muito ofensiva, sugerindo que ele era um caloteiro, e pôs um processo por difamação aos jornalistas e ao director do CM exigindo uma indemnização avultada.

Em primeira instância, o CM foi absolvido. O juiz Rui Rangel recorreu então para o TRL onde ele próprio era juiz e é neste momento que a corrupção da justiça, a que chamei rangelismo, se vai iniciar.

O juiz Rui Rangel mete uma cunha ao presidente do TRL, na altura o juiz Vaz das Neves, para que o processo seja distribuído a um juiz amigo dele e que pronuncie uma sentença que lhe seja favorável. E, de facto, o acórdão da Relação de Lisboa, assinado pelo juiz Orlando Nascimento, inverte a decisão de primeira instância e condena o CM a pagar uma indemnização de 50 mil euros ao juiz Rangel por "obliteração da honra" deste último.

(O CM recorreria depois para o Supremo onde seria absolvido).

Os juízes Rui Rangel e Vaz das Neves são agora acusados pelo Ministério Público no âmbito da Operação Lex e o juiz Orlando Nascimento poderá vir a ser acusado em processo separado.

A questão a que pretendo responder neste ponto é a seguinte: "Foi o Ministério Público que, no âmbito de Operação Lex, trouxe a público, em primeiro lugar, esta forma de corrupção na justiça a que chamo rangelismo?"

Não. Quem trouxe o rangelismo a público fui eu que não sou investigador criminal nem recebo do Estado um vencimento superior ao do primeiro-ministro, como acontece com os  "investigadores criminais" do MP no topo da carreira. Fi-lo no âmbito do meu case-study. E também envolve um Rangel, daí que, por força desta dupla-conforme, tenha dado o nome de rangelismo a esta forma de corrupção da justiça.

O eurodeputado Paulo Rangel colocou-me um processo-crime por difamação agravada por causa de um comentário que fiz no Porto Canal pedindo-me uma indemnização de 50 mil euros (os Rangeis parecem ter uma certa obsessão por este montante: 50 mil euros). Em primeira instância, no Tribunal de Matosinhos, fui absolvido, como sucedera ao CM no caso do juiz Rangel.

O eurodeputado Rangel recorreu para a  Relação do Porto, como o juiz Rangel fizera para a Relação de Lisboa. E a Relação do Porto inverteu a decisão de primeira instância, dando razão ao eurodeputado Rangel como a Relação de Lisboa fizera no caso do juiz Rangel (cf. aqui).

Fui condenado a pagar 10 mil euros de indemnização ao eurodeputado Rangel, ainda assim uma fracção daquilo que o CM tinha sido condenado a pagar ao juiz Rangel (um sinal, talvez, de que as cunhas dos juízes dentro do sistema de justiça valem bastante mais do que as cunhas dos políticos).

(A decisão encontra-se presentemente em fase de recurso).

Tomei conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de que era relator o juiz Pedro Vaz Patto, através de um jornalista que logo me preveniu: "Olhe que a decisão foi política...".

Ora, o sistema de justiça existe para fazer justiça e não para fazer perseguição política. Mas, na verdade, dias depois, quando tive acesso ao acórdão, ele era de tal maneira apalermado que eu próprio concluí: "Aqui há gato!...".

Foi então que fiz uso daquela que considero a maior invenção democrática da última geração - a internet - e eu próprio me tornei investigador criminal, embora de maneira  meramente virtual. 

Comecei por fazer uma pesquisa no google sob o título "juiz Pedro Vaz Patto".  E imediatamente descobri que ele tinha várias actividades para além de juiz, sendo também activista político onde partilhava certas causas com o eurodeputado Paulo Rangel (v.g., contra a eutanásia).

Mas a informação que me chamou mais a atenção foi um artigo do juiz Vaz Patto no Observador onde assinava como presidente da Assembleia Geral de uma ONG chamada "O Ninho" (cf. aqui). 

Depois, fiz nova  nova busca na internet desta vez sob o título  "Paulo Rangel juiz Pedro Vaz Patto" e eis que surge este documento (cf. aqui) em que os dois pombinhos - o eurodeputado Paulo Rangel e o juiz Vaz Patto - aparecem como confrades a celebrarem os 50 anos da Associação "O Ninho", ambos em posições institucionais dentro da Associação - o juiz como presidente da Assembleia Geral, o  eurodeputado como membro da Comissão de Honra.

Os dois pombinhos tinham sido apanhados literalmente num ninho (cf. aqui).

As minhas descobertas que viriam a seguir parecem agora, em retrospectiva, mais ou menos óbvias. A Associação "O Ninho" financia-se quase exclusivamente através de subsídios do Estado, ao ritmo de cerca de meio milhão de euros ao ano, e precisa de fazer lobbying junto das principais figuras dos dois partidos políticos que há mais de 40 anos controlam a Administração Pública e a distribuição dos subsídios.

Sem estes subsídios  do  Estado a Associação "O Ninho" há muito teria fechado portas e o juiz Vaz Patto ficaria impedido de fazer viagens à Alemanha para assistir a conferências sobre prostituição, porque eu suponho que o Tribunal da Relação do Porto não lhe paga essas despesas.

Portanto, entre mim e o eurodeputado Paulo Rangel, o juiz Vaz Patto decidiu pelo seu confrade, o eurodeputado Rangel. Muito bem, porque me permite agora proclamar aos quatro ventos que fui eu, e não o Ministério Público, quem descobriu o rangelismo dentro do sistema de justiça.

E se, ainda assim, houver dúvidas, que fui eu - e não o Ministério Público - quem descobriu o rangelismo pode ir atrás no meu case-study, ao ano de 2018, depois de conhecida a sentença de primeira instância do Tribunal de Matosinhos, que me absolveu do crime de difamação agravada ao eurodeputado Paulo Rangel, mas me condenou pelo crime de ofensa à sociedade de advogados de que ele era director na altura - a  Cuatrecasas 

Num post ironicamente intitulado "aleatoriamente" (cf. aqui) já aí eu sugeria, a propósito da escolha do juiz de primeira instância, que tinha havido rangelismo.

Sem comentários: