26 maio 2020

Cinco anos (4)

(Continuação daqui)

4. Em risco de cair


Olhando em retrospectiva, eu hoje sinto uma enorme afinidade com Mercedes Cuatrecasas, sinto-me uma espécie de Mercedes em ponto pequeno, um Smart.

Quis o destino que, mesmo sem nos conhecermos, unidos apenas pelo facto de vivermos ambos nas segundas cidades dos dois países da Península Ibérica que ressentem profundamente as suas respectivas capitais, as nossas acções convergissem no alvo e no timing de uma maneira que nada faria prever.

Ela em Barcelona, eu no Porto. O timing comum foi o ano de 2015. O alvo foi a sociedade de advogados Cuatrecasas e os seus dirigentes máximos em cada uma destas cidades.

Foi em 2007 que Mercedes descobriu o que é que se passava por detrás daquelas idas frequentes do marido a Madrid assistir aos jogos do Real, ele que, seguindo a tradição dos Cuatrecasas, era um catalão dos quatro costados, fanático do Barcelona e com lugar cativo em Nou Camp.

Trocada por uma madrilena, Mercedes, que era dona de uma forte tradição nacionalista catalã herdada dos Barceló, sentiu o seu orgulho feminino profundamente abalado. E a vingança foi terrível. Denunciou o marido ao fisco.

Porém, como a justiça espanhola é ainda pior do que a portuguesa - porque a Inquisição também foi mais vincada em Espanha do que em Portugal - o tiro de canhão disparado por Mercedes só atingiria o alvo oito anos depois, em 2015, quando Don Emílio foi condenado por um tribunal a dois anos de prisão por fuga ao fisco, e se viu obrigado a abandonar a presidência da sociedade de advogados que tinha o seu nome de família.

O golpe foi extraordinário. Uma sociedade que derivava uma grande parte das suas receitas da oferta de serviços de "planeamento fiscal" aos seus clientes, pagos à taxa de várias centenas de euros à hora,  via agora o seu presidente na iminência de ir parar à cadeia por excesso de "planeamento fiscal".

Diz-se que a Cuatrecasas - que é conhecida por comprar magistrados do ministério público, juízes e  políticos - moveu todas as suas influências dentro do sistema de justiça espanhol para livrar o seu presidente da cadeia. E conseguiu. No fundo, porque talvez não haja nada dentro de um sistema de justiça que a Cuatrecasas não consiga manipular - e não somente em Espanha.

A pena de prisão acabou por ser comutada em pena de multa, em resultado da conhecida proximidade da Cuatrecasas ao Partido Popular (em Portugal, a proximidade é ao correspondente português do PP, o PSD) que, na altura, estava no poder em Espanha. Diz-se que foi decisiva a acção de Soraya Sáenz de Santamaría, que era vice-primeira-ministra do governo de Mariano Rajoy (cf. aqui).

Não é de estranhar que depois de sair do governo, Soraya tenha aceite a oferta para se tornar sócia da Cuatrecasas com  honorários que podem chegar aos dois milhões de euros ao ano. (cf. aqui). (Este exemplo mostra como a promiscuidade entre política e advocacia é um negócio de milhões, com graves prejuízos para a política e mais ainda para a justiça. Quem ousar pô-lo em causa, como eu fiz no meu comentário no Porto Canal, está a assumir certos riscos).

O prestígio da Cuatrecasas ficou muito abalado, mas a sociedade, dada a sua dimensão, ficou longe de cair. Por isso, eu senti-me muito injustiçado, quando a Quequé, advogada da Cuatrecasas (mas que agora anda por outras paragens, cf. aqui), de lágrima no olho, declarou ao juiz do tribunal de Matosinhos, que eu quase ia fazendo cair a sociedade (cf. aqui).

Só podia ser exagero. É certo que o meu tiro sobre a Cuatrecasas foi disparado em 2015, o mesmo ano em que o tiro de canhão de Mercedes Cuatrecasas atingiu o marido e a sede da empresa em Barcelona. Eram muitos tiros num só ano.

É certo também que o meu disparo levou à saída do Paulo Rangel da direcção do escritório da Cuatrecasas no Porto. Mas a verdade é que o Paulo Rangel não tinha na Cuatrecasas, nem de longe, a importância de Don Emílio.

Mercedes tinha acertado na figura principal da Cuatrecasas e feito estremecer a sua sede em Barcelona. Eu acertara numa figura de terceiro plano da sociedade e num escritório que não tinha importância nenhuma na estrutura multinacional da sociedade - o escritório do Porto. Os dirigentes da Cuatrecasas em Barcelona, nem sequer sabiam dizer o nome da cidade, chamando-lhe Oporto.

O meu sentimento de admiração subiu em flecha quando, na sessão seguinte, o advogado José de Freitas, sócio fundador da Cuatrecasas no Porto, depois de informar o juiz que eu me passeava de Porsche na cidade, veio confirmar que a sociedade esteve quase para caír por causa do meu comentário televisivo, e que tiveram de dar explicações internacionais, presumo que aos chefes da Cuatrecasas em Barcelona (cf. aqui).

Ora, se a Cuatrecasas não caiu com o tiro de canhão de Mercedes Barceló disparado ao seu presidente e à sua sede em Barcelona, como é que poderia cair com o meu tiro de caçadeira, disparado ao seu escritório do Porto e ao seu director?

Não podia, tratava-se de um franco exagero,  pensei eu na altura.

E agora, em retrospectiva, confirmo o sentimento que tive então. Nos cinco anos que já levo deste processo, eu nunca vi nada nem ninguém em risco de cair, muito menos a Cuatrecasas. Uma única excepção  apenas - o sócio fundador do escritório da Cuatrecasas no Porto. Mas esse não foi por minha acção e muito menos por acção de Mercedes Cuatrecasas.

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