(Continuação daqui)
2. Mercedes Cuatrecasas
É uma das pessoas mais fascinantes que conheci durante o meu case-study, embora nunca a tenha conhecido pessoalmente - foi apenas conhecimento virtual, por internet. Ao conhecê-la, senti imediatamente por ela uma espécie de comunhão espiritual.
Tinha todos os sinais de ter sido uma beleza de mulher na sua juventude. Agora, quem contemplasse a sua imagem, notava-lhe o peso dos anos e dos próprios quilos. O destino tinha-lhe reservado dar continuidade a uma das mais poderosas famílias da Catalunha. Tinha três filhas e isso dava-lhe um ar de autoridade que só era excedido por uma outra característica da sua personalidade - o seu nacionalismo catalão.
Foi o juiz de Matosinhos que me conduziu a tão fascinante personalidade quando logo no primeiro dia do julgamento, durante o interrogatório, me perguntou - suponho que a instâncias do Papá Encarnação, que era o advogados de acusação - se eu sabia que a sociedade de advogados Cuatrecasas tinha cem anos.
Fiz uma pausa, encolhi os ombros e com um trejeito facial respondi que não, ao mesmo tempo que pensava: "Um criminoso, mesmo um grande criminoso como eu, não tem que saber a idade das sociedades de advogados deste mundo...".
Mas, para não ficar para sempre ignorante, nesse dia à noite, depois do jantar, fui à internet e à wikipédia saber se, de facto, a sociedade de advogados Cuatrecasas tinha cem anos. Concluí que o juiz se tinha enganado por um ano - tinha cento e um. Estávamos em Fevereiro de 2018 e a sociedade Cuatrecasas tinha sido fundada em 1917 por um advogado de Barcelona chamado Pedro Cuatrecasas.
Uns minutos e meia dúzia de links adiante cheguei a ela. Mercedes Cuatrecasas era o seu nome, mas agora usava de novo o nome de solteira, Mercedes Barceló. Tinha-se divorciado havia pouco de Emílio Cuatrecasas, o neto do fundador, que desde 1980 era o presidente da sociedade de advogados possuindo o nome da família.
O ano de 2015 foi trágico para a família Cuatrecasas e para a sociedade e não foi por ter sido o ano em que, aos écrans do Porto Canal, eu disse que a Cuatrecasas produzira um trabalho que era uma "palhaçada jurídica" e o seu director do escritório do Porto era um "politiqueiro" e um "jurista de vão-de-escada". A verdadeira tragédia ocorreu em Barcelona, com ligações a Madrid, e teve Mercedes Cuatrecasas como epicentro.
Em termos de advocacia, a rivalidade entre a Cuatrecasas de Barcelona e a Garrigues de Madrid era tão grande como, no futebol, a rivalidade entre o F.C. Barcelona e o Real Madrid. A Garrigues era a maior sociedade de advogados de Espanha e da Europa continental e a Cuatrecasas vinha logo a seguir, na mesma proporção em que o Real Madrid era o melhor clube do mundo e o F.C. Barcelona vinha logo a seguir.
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, as grandes sociedades de advogados não derivam as suas receitas sobretudo por andarem a litigar em tribunal. A maior parte das suas receitas derivam de negócios financeiros, que elas realizam ao abrigo do seu estatuto de opacidade, e daquilo que elas próprias chamam "fiscal".
A área fiscal consiste na elaboração de esquemas fiscais complexos para os seus clientes mais ricos, incluindo jogadores de futebol (v.g., Lionel Messi é cliente da Cuatrecasas) a troco de honorários milionários. Embora estes esquemas visem um fim legítimo, que é o de minimizar os pagamentos fiscais dos seus clientes, facilmente passam a linha vermelha e se convertem em esquemas de fuga ao fisco. Dos quase 300 milhões de euros de facturação anual da Cuatrecasas, cerca de um terço (100 milhões) deriva desta linha de negócio.
Para além de escritórios em vários países do mundo, a Cuatrecasas, dispondo de uma monumental sede em Barcelona, tem também um grande escritório em Madrid. Ora, como um genuíno catalão, Don Emílio Cuatrecasas gostava tanto de ir a Madrid como um portuense gosta de ir a Lisboa. E aquilo que ele gostava mais em Madrid era semelhante àquilo que um portuense gosta mais em Lisboa - o primeiro transporte para a sua cidade natal.
Se esta aversão por Madrid por parte de Don Emílio era grande, a aversão de sua esposa, Dona Mercedes era muito maior. O seu nacionalismo catalão radical, que lhe vinha de uma forte tradição de família, não lhe permitia sequer ir a Madrid. Dava-lhe vómitos. E todas as mulheres madrilenas eram, para ela, umas verdadeiras pindéricas. Foi nestes princípios de um irredutível nacionalismo catalão que educou as suas três filhas, que um dia haveriam de suceder ao pai nos comandos da maior sociedade de advogados da Catalunha e uma das maiores do mundo - a Cuatrecasas. Infelizmente, nenhuma cursou Direito.
Até que um dia, Mercedes começou a notar, com surpresa, que Don Emílio andava a viajar com uma frequência inusitada para Madrid. Primeiro, uma vez por semana, e depois duas, lá ia ele, logo pela manhã, vestido com o seu melhor fato, todo engravatado, bem perfumado, só voltando a casa dois ou três dias depois.
Mercedes Barceló (Cuatrecasas) durante uma acção de filantropia da sociedade de advogados Cuatrecasas em África
Por duas ou três vezes, Mercedes interrogou o marido acerca daquele frenesim das viagens a Madrid, e ele respondia sempre que o escritório de Madrid andava com muito trabalho, muito mais do que o de Barcelona, a requisitar permanentemente a sua presença. À terceira vez, Mercedes fingiu aceitar a explicação.
Até que as coisas se complicaram. A partir de certa altura, Don Emílio Cuatrecasas, que era um adepto ferrenho do F. C. Barcelona, saía de sua casa, no centro de Barcelona, à sexta de manhã para ir passar o fim-de-semana a Madrid, dizendo à esposa que ia assistir à partida entre o Real Madrid e o Alavés, só regressando a casa segunda-feira pela hora do almoço.
Não demorou muito até que a argúcia de Mercedes se impusesse à realidade e ela descobrisse que o marido andava envolvido com uma retumbante loira que era advogada no escritório da Cuatrecasas em Madrid.
Foi o fim. Em nome da unidade da família, Dona Mercedes já tinha aguentado muito. Agora, para uma nacionalista catalã como ela, uma barcelonesa de gema, o envolvimento do marido com uma mulher de Madrid não era uma mera traição. Era alta traição.
Viveram-se, então, dias de grande turbulência em casa dos Cuatrecasas em Barcelona, uma turbulência que, em breve, se estenderia à sociedade de advogados. Diz-se que no momento mais agudo da sua fúria de mulher despeitada, Mercedes Cuatrecasas terá gritado para quem a queria ouvir, referindo-se à amante do marido: "Aún se fuera una gallega!...". Ainda se fosse uma galega, talvez houvesse lugar para perdão. Agora, uma madrilena era absolutamente imperdoável.
Don Emílio Cuatrecasas, ex-presidente da sociedade de advogados Cuatrecasas
A vingança não se fez esperar e veio rápida e feroz. Mercedes Cuatrecasas denunciou o marido à autoridade tributária. Segundo a denúncia, o marido detinha várias sociedades offshore através das quais fugia ao fisco. Não era nada de admirar para o presidente de uma sociedade de advogados que derivava um terço da sua facturação a fazer isso mesmo para os seus clientes.
O Fisco espanhol sorriu de contente. Alguns anos depois, Don Emílio Cuatrecasas, presidente da segunda maior sociedade de advogados de Espanha e da Europa continental, especialista em "planeamento fiscal", era condenado a dois anos de prisão por fuga ao fisco. Depois de vários recursos conseguiu que a pena de prisão fosse comutada em pena de multa no valor de 4 milhões de euros.
Foi a pior publicidade que se podia imaginar para a sociedade de advogados Cuatrecasas. Quem é que agora ia pôr a sua fiscalidade nas mãos da Cuatrecasas, pagando honorários milionários, se o risco era o de ainda ir parar à prisão, como sucedeu ao próprio presidente da sociedade?
Don Emílio Cuatrecasas teve de se demitir da presidência da sociedade. Foi uma prenda terrível em antecipação do centenário que se celebraria dois anos depois. Don Emílio sucedera ao avô Pedro e ao pai, também Emílio. Agora, pela primeira vez na sua já longa história, não havia um Cuatrecasas a presidir à Cuatrecasas, uma situação que se mantém até hoje. Cortesia de Mercedes Cuatrecasas, agora Mercedes Barceló.
(Continua)
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