3. Demoras na justiça
Mais de 50% das condenações de Portugal (leia-se: da justiça portuguesa) pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) são por violações do artº 6º da Convenção, que consagra o direito a um processo justo ou equitativo.
Nada que seja surpreendente. O pior da justiça portuguesa e, em particular, o seu carácter inquisitorial, está precisamente no processo. É o processo penal português, que é anti-democrático, que colide com o processo democrático previsto no artº 6º da CEDH (cf. aqui).
Este artigo contém vários direitos que, no seu conjunto, constituem um processo justo ou equitativo. Pelo que cabe perguntar, se Portugal é, as mais das vezes, condenado por violar o artº 6º, qual é o direito, contido neste artigo, que a justiça portuguesa viola mais vezes.
É o direito à realização da justiça "num prazo razoável". Por outras palavras, o maior número de condenações do Estado português no TEDH ocorre por demoras na justiça, um tema que é imensamente familiar a todos os portugueses.
Fez ontem precisamente cinco anos que eu pronunciei no Porto Canal o comentário que deu origem ao meu case-study. Cinco anos parece tempo mais que suficiente para se fazer justiça num caso que parece banal, pelo que é legítimo perguntar: "Já foi feita justiça, já existe uma decisão definitiva dos tribunais portugueses, seja ela absolutória ou condenatória?". A resposta é um concludente não. Nem se espera para breve.
Tendo eu, alegadamente, cometido os crimes de que era acusado em maio de 2015, só em fevereiro de 2018 o caso foi a julgamento, pelo que o criminoso andou dois anos e meio em roda livre, apenas sujeito à medida de coação "termo de identidade e residência" que, em princípio, não me permitiria sair do país sem autorização de um juiz. Entrei e saí as vezes que me apeteceu e nunca ninguém me aborreceu. Durante estes dois anos e meio, se eu fosse dado a reincidências, teria tido tempo para ofender Portugal inteiro, e não apenas o eurodeputado Paulo Rangel, e todas as sociedades de advogados espanholas, e não somente a Cuatrecasas.
Em Junho de 2018, no tribunal de primeira instância de Matosinhos, fui absolvido por um dos crimes (difamação agravada ao director da Cuatrecasas) e condenado pelo outro (ofensa a pessoa colectiva à Cuatrecasas). Mas não cumpri pena nenhuma, a condenação foi só para inglês ver.
Em Março de 2019, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a condenação pelo segundo dos crimes e condenou-me inovadoramente pelo primeiro. Mas, mais uma vez, eu não cumpri pena nenhuma, foi só, e ainda, para inglês ver.
Recorri para o Supremo através de um requerimento que deu entrada pelo TRP, que o devolveu sob o argumento de que o Tribunal Constitucional não permite ao Supremo apreciar recursos quando a pena é de multa, como era o meu caso. Recorri então directamente para o presidente do Supremo, que me deu a mesma resposta.
Foi a altura de recorrer para o TC pedindo o favor de me deixarem exercer o direito ao recurso previsto no artigo 32º da Constituição. Numa decisão sumária (i.e., assinada por um só juiz) o TC respondeu-me que não, porque a minha condenação era em pena de multa, e o TC só acederia ao meu pedido se a pena fosse de prisão. (O TC foi criado para garantir os direitos constitucionais aos cidadãos, mas, em lugar disso, apropriou-se da Constituição, de tal modo que os cidadãos só podem exercer os seus direitos constitucionais se ele deixar).
Mas, enquanto o TC me respondia que não numa decisão sumária em Dezembro de 2019, um colectivo do mesmo TC preparava uma resposta favorável à mesma questão a dois guardas da GNR que lhe tinham feito o mesmo pedido, e que foi publicada em acórdão em meados de Janeiro de 2020. Também os guardas da GNR tinham sido condenados inovadoramente na Relação em pena de multa, tal como eu, e queriam recorrer para o Supremo (cf. aqui).
Fiz então uma reclamação para o TC que, na essência, em versão popular, dizia o seguinte: "Então vocês, seus marotos, concedem o direito ao recurso aos guardas da GNR, e não a mim? Há filhos e enteados da Constituição? Fazem favor de pôr isso por escrito, e assinado por três juízes, que é assim que se pronuncia um tribunal superior, para eu enviar tudo para o TEDH".
Há quase cinco meses que aguardo resposta. O TC foi muito rápido a responder-me que não, mas em vista do precedente que abriu para os guardas da GNR, está a custar-lhe muito, e a demorar muito tempo, para me responder que sim.
Respondendo sim, o caso segue para o Supremo. E enquanto tudo isto se passa, cinco anos depois, o criminoso continua à solta, sem sofrer qualquer pena, e com o risco de reincidir, ofendendo qualquer português que lhe apareça pela frente. Existe mesmo o risco de o criminoso morrer sem que se faça justiça - e essa é precisamente a lógica do nosso sistema de justiça.
As demoras na justiça em Portugal são um elemento essencial daquela tradição autoritária, que teve a sua maior expressão na Inquisição, segundo a qual a justiça penal não serve apenas para punir delinquentes de delito comum (v.g., homicidas, burlões), mas também para perseguir pessoas antipáticas ao poder político. A justiça é um braço do poder político. A justiça está ao serviço do poder político.
Como estas pessoas não cometeram crime algum, o sistema de justiça não tem pressa nenhuma para chegar a uma sentença que seja definitiva porque o mais provável é que a sentença definitiva seja absolutória, e não condenatória do réu, deixando mal a justiça e bem o réu.
Nestes casos, a pena está no processo, prejudicando a reputação do visado que, aos olhos da comunidade, passa a ser um suspeito; obrigando-o a despesas contínuas para se defender; aplicando-lhe medidas preventivas, como o congelamento dos seus bens, a pulseira electrónica ou a prisão preventiva que, sendo penas processuais, são verdadeiras penas.
Para que a pena processual, nas suas mais diversas variantes, se possa prolongar pelo máximo tempo possível, assim também o processo se deve prolongar no tempo e, no limite, não ter fim. É esta a razão para as demoras da justiça de que os portugueses se queixam e que tem levado à condenação sistemática de Portugal no TEDH. Resulta da tradição autoritária e antidemocrática que há séculos está instituída na justiça portuguesa.
Quando for feita a reforma democrática, a justiça portuguesa passará a ser mais célere.
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