04 março 2020

O Labirinto (III)

(Continuação daqui)


III. V. Exas dão licença?


Como é que uma lei que é duplamente inconstitucional é aprovada pela Assembleia da República, que está cheia de juristas, e promulgada pela Presidência da República, que também está cheia de juristas?

Deixarei a resposta a esta questão para outra ocasião, para agora referir que foi isto que sucedeu com a lei 20/2013. A racionalidade desta lei era a de aumentar a eficiência do Supremo Tribunal de Justiça, evitando que recursos sobre processos de menor importância subissem ao Supremo.

No essencial, a lei 20/2013 diz que só são recorríveis para o Supremo condenações envolvendo penas de prisão superiores a 5 anos.

O problema é que esta lei chocava directamente com dois artigos da Constituição, o artº 32º que garante a todos os cidadãos o direito ao recurso, sem qualquer restrição ou qualificação, e o artº 18º, que diz que nenhuma lei pode restringir os direitos constitucionais, excepto nos casos previstos na própria Constituição (cf. aqui).

Esta lei, que colidia duplamente com a Constituição esteve em vigor, sem qualquer alteração, durante cinco anos, e só em 2018 foi posta em crise.

Aconteceu ainda por virtude de um processo por ofensas, e ilustra também os recursos económicos que o nosso sistema de justiça gasta com os processos de ofensas que têm levado invariavelmente à condenação de Portugal no TEDH e acerca dos quais, há mais de uma década, o Conselho da Europa (que integra o TEDH) recomenda que sejam descriminalizadas.

O deputado madeirense José Manuel Coelho tinha sido absolvido em primeira instância por um tribunal do Funchal de ofensas ao advogado Garcia Pereira (mais uma vez, um insider do sistema de justiça a sentir-se ofendido).

Garcia Pereira recorreu para a Relação de Lisboa, que inverteu a decisão de primeira instância e condenou José Manuel Coelho a um ano de prisão (por reincidência, pena a cumprir aos fins-de-semana) e a pagar uma indemnização a Garcia Pereira (mais uma vez, o Tribunal da Relação a inverter a decisão absolutória de primeira instância).

Sendo condenado pela primeira vez na Relação, o deputado Coelho recorreu para o Supremo invocando o artº 32º da Constituição sobre o direito ao recurso e o artigo correspondente da CEDH (artº 2º do Protocolo nº 7).

O Supremo negou-lhe o recurso invocando a lei 20/2013. Ele tinha sido condenado a um ano de prisão e a lei 20/2013 só permitia ao Supremo apreciar recursos se a pena fosse superior a 5 anos de prisão.

O deputado Coelho recorreu então para o Tribunal Constitucional a pedir a declaração de inconstitucionalidade da lei 20/2013 por violar os artigos 18º e 32º da Constituição.

A questão posta pelo deputado Coelho ao Tribunal Constitucional era uma questão muito simples e que até um estudante de Direito, ou um leigo na matéria, sabe responder. É a questão da hierarquia das leis. Estão em conflito uma lei constitucional (artº 32º) e uma lei ordinária (lei 20/2013). Qual a lei que prevalece?

-Prevalece a lei de nível superior que é, neste caso, a lei constitucional, que diz: "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso"

E foi assim que o Tribunal Constitucional respondeu?

Não. O Tribunal Constitucional, num extenso acórdão redigido pela juiz Fátima Mata-Mouros, e com numerosas declarações de voto, em que a única que se aproveita é a do presidente, Prof. Costa Andrade, resolveu metade do problema e deixou a outra metade por resolver (cf. aqui).

O acórdão diz que a lei 20/2013 é inconstitucional e que são admissíveis recursos para o Supremo desde que a condenação seja em pena de prisão, satisfazendo a pretensão do deputado Coelho (que viria a ser absolvido no Supremo, cf. aqui), mas ficando excluídas as condenações em outras modalidades de pena (v.g., multa, como era o meu caso e o dos cabos da GNR; trabalho comunitário, etc.).

Através deste acórdão, os juízes do Tribunal Constitucional reescreveram a Constituição, sem terem legitimidade para tal, uma legitimidade que pertence exclusivamente à Assembleia da República com uma maioria de dois terços dos deputados.

A Constituição diz: "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso". Agora, passava a dizer: "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, mas só se a condenação for em pena de prisão". Ora, esta última parte não está na Constituição, é invenção dos juízes do Tribunal Constitucional.

Foi com base nesta leitura sui generis da Constituição que o meu recurso para o Tribunal Constitucional, a que já fiz referência (cf. aqui), foi rejeitado em Dezembro por decisão sumária de um juiz.

Um mês depois, pelo acórdão  31/2020 de 16 de Janeiro, sob requerimento dos cabos da GNR, o Tribunal Constitucional decidiu o contrário, que, afinal, o recurso para o Supremo é admissível mesmo quando a condenação pela Relação seja em pena de multa (cf. aqui).

Eu estou agora à espera que o Tribunal Constitucional me dê licença, como deu aos cabos da GNR, para exercer o meu direito constitucional ao recurso:

-V. Exas. dão licença? 

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