Quem tenha acompanhado ao longo dos anos - o que não foi o meu caso - a actividade pública do juiz Pedro Vaz Patto do Tribunal da Relação do Porto há muito que sabia aquilo que eu só soube ao ler o acórdão em que ele me condenou (cf. aqui).
Refiro-me à opinião que o juiz Vaz Patto possui relativamente à liberdade de expressão e ao conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à honra. Essa opinião está contida num artigo do Público de 2015 (cf. aqui) e também num artigo da Brotéria (cf. aqui, esp. sexto parágrafo a contar do fim)
É a seguinte a opinião do juiz Vaz Patto. A liberdade de expressão serve para discutir ideias ou acções, mas não para discutir pessoas, certamente que não para emitir juízos negativos sobre pessoas, os quais, naturalmente, as ofendem. A liberdade de expressão pára onde começa a ofensa. A liberdade de expressão não comporta a ofensa.
Esta opinião tem a sua correspondência na jurisprudência vigente durante o período do Estado Novo em que o direito à honra prevalecia decisivamente sobre o direito à liberdade de expressão - liberdade de expressão que nem sequer existia na sua plenitude porque a censura estava institucionalizada. Esta opinião corresponde também à jurisprudência prevalecente no tempo da Monarquia Absoluta, sob a qual Portugal viveu durante quase sete séculos, e que compreendeu o período da Inquisição. Na linguagem popular, é a jurisprudência do respeitinho.
A opinião do juiz Vaz Patto é inteiramente respeitável porque reflecte, afinal, a jurisprudência tradicional portuguesa acerca do conflito entre a liberdade de expressão e a honra, que é uma jurisprudência de inspiração católica, onde é dado muito valor à honra e muito pouco à liberdade (porque esta é potenciadora do pecado, cf. aqui).
Porém, não é esta a jurisprudência que vigora no Estado Democrático de Direito sob a Constituição portuguesa de 1976. A jurisprudência que agora vigora em Portugal é a jurisprudência democrática definida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e resultante da subscrição , por parte de Portugal, em 1978, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Segundo esta jurisprudência, a liberdade de expressão comporta a ofensa (cf. aqui).
Como cidadão, o juiz Vaz Patto tem toda a legitimidade para ter a opinião que quiser. Como juiz, é mais duvidoso. O juiz Vaz Patto não é juiz na sua própria quinta nem exerce a judicatura por sua própria conta e risco. É juiz em Portugal e exerce a judicatura em nome do Estado português, que é quem lhe paga. Está portanto vinculado a respeitar os compromissos assumidos pelo Estado português, que incluem o respeito pela CEDH e pela jurisprudência do TEDH.
A situação torna-se tanto mais complexa quanto é certo que, para além de juiz-desembargador no Tribunal da Relação do Porto, o juiz Vaz Patto desempenha uma actividade política como presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz que tem como missão divulgar a Doutrina Social da Igreja (cf. aqui).
Ora, a Doutrina Social da Igreja não é uma doutrina religiosa (essa está no Catecismo). É uma doutrina política que a Igreja Católica desenvolveu a partir de 1891 (Papa Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum") para servir de alternativa ou de "terceira via" ao liberalismo e ao socialismo. A Doutrina Social da Igreja é o modelo político de sociedade que emana do catolicismo, do mesmo modo que o liberalismo (capitalismo) é o modelo político de sociedade que emana do calvinismo e o socialismo o modelo político de sociedade que emana do luteranismo.
Não apenas no plano das ideias, mas também no dos actos, o juiz Vaz Patto desempenha uma actividade política. Participar numa manifestação junto ao Parlamento contra uma proposta de lei produzida por partidos democraticamente eleitos, não é uma acto religioso como ir à missa. É um acto político (cf. aqui).
E é nesta duplicidade de actividades - a judicial e a política - que o juiz Vaz Patto se envolve num conflito de interesses que vicia o debate público democrático. Por um lado, enquanto divulgador de ideias políticas e activista político, é um participante no debate. Por outro lado, enquanto juiz, é árbitro nesse debate. E um árbitro muito especial, um árbitro com capacidade para impor regras que são, não aquelas que vigoram no país - que são as definidas pelo TEDH - mas as que resultam da sua própria idiossincrasia pessoal.
Para quem não soubesse a partir dos seus artigos de opinião, fica a agora a saber, porque vem num documento público, como é um acórdão, e em nome de um órgão de soberania - como é o Tribunal da Relação do Porto - que no debate público e democrático não se podem ofender políticos.
Ficamos agora à espera que o Tribunal da Relação do Porto, pela mão do juiz Pedro Vaz Patto, defina o resto das regras para que nós possamos prosseguir o debate sabendo as linhas com que nos cosemos.
Ofender políticos não é possível. E jogadores de futebol?
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