23 setembro 2018

Sentença (VIII)

(Continuação daqui)


VIII. Duas



Na designação anglo-saxónica, o processo judicial do meu case-study (cf. aqui) teria o nome de "Ministério Público e Cuatrecasas vs. Arroja" ou, de forma ainda mais impressiva, "Portugal e Cuatrecasas vs. Arroja".

Os meus acusadores eram, portanto, magistrados do Ministério Público e  advogados. Foram dois os magistrados do MP que intervieram no processo - um produzindo a acusação, o outro acusando em julgamento - pelo crime (público) de difamação agravada ao Paulo Rangel. E três os advogados da Cuatrecasas que subscreveram a acusação pelo crime  (particular) de ofensa a pessoa colectiva.

Eu sempre considerei que mesmo um estudante mediano do CEJ que conhecesse razoavelmente a matéria - a qual consiste na jurisprudência do TEDH sobre este assunto (cf. aqui) - produziria imediatamente uma sentença de "absolvição" em relação aos dois crime que me eram imputados.  E isto porque este era um caso-de-escola, um daqueles casos simples que se dão aos estudantes como exercício logo nos primeiros anos da sua formação, a tal ponto que o transformei num case-study.

A realidade, porém, traz factores de complexidade que não estão presente nos casos-de-escola, e neste caso a complexidade não era pouca (cf. aqui). Por isso, durante o julgamento, pondo-me na pele do juiz, não foram raras as ocasiões em que me interroguei:

-Como é que o juiz vai decidir entre mim, por um lado, e os magistrados do Ministério Público e os advogados, por outro?

Nunca estive certo, e disso também dei conta (cf. aqui), que a decisão de 1ª Instância fizesse justiça inteira. Era uma possibilidade, mas uma mera possibilidade. Certo para mim era que, mais cedo ou mais tarde, na primeira ou em outra instância, eu acabaria por ser completamente absolvido, uma certeza que, obviamente, ainda hoje mantenho.

A sentença acabou por ser repartida - absolvição do crime de difamação agravada, condenação pelo crime de ofensa a pessoa colectiva -, e eu considerei-a muito satisfatória. Na realidade, fui até bastante mais longe na altura, considerando a sentença óptima (cf. aqui).

É que uma condenação tinha para mim, do ponto de vista intelectual, um atractivo irresistível. Tendo em conta a minha convicção absoluta de que não existia crime algum no meu comentário televisivo, uma sentença condenatória tinha de conter necessariamente uma injustiça  e, se calhar, até mais do que uma. E eu até já me via a procurar descortinar essa injustiça na sentença e, provavelmente, até mais do que uma.

Agora, que a sentença está dada, quantas injustiças contém afinal a minha sentença?

Duas.
(Refiro-me a injustiças das grandes).

De uma eu já dei conta. Está assente num erro de jurisprudência relativo ao Artº 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. aqui). Considerando erradamente que o direito à liberdade de expressão é mais restrito quando se refere a advogados do que quando se refere a políticos, o juiz condenou-me por eu ter ofendido os advogados. O facto ilícito foi eu ter posto em causa a relação de confiança ou lealdade entre advogados e os seus clientes.

E a outra?

A outra é mais subtil porque é de natureza cultural, mas é mais violenta. Ela perpassa por toda a sentença condenatória sem que salte à vista e é dificilmente apreensível por quem não tenha vivido o processo ou assistido ao julgamento. Deriva da cultura penal portuguesa, uma cultura de propensão acusatória e condenatória, inquisitorial e profundamente antidemocrática, e que se encontra hoje representada sobretudo no Ministério Público.

É a cultura de acusar e condenar sem dar ao réu qualquer possibilidade de defesa, uma cultura em que o acusador é, ao mesmo tempo, o juiz.

É desta segunda grande injustiça que vou tratar a seguir.


(Continua)

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