III. Na boca
A sentença condenatória assenta na ideia de que a Cuatrecasas e os advogados que a compõem são uma espécie de casta que não está sujeita às mesmas regras que se aplicam a todas as figuras públicas e a todas as outras empresas e instituições que, como ela, têm as suas portas abertas ao público.
Este erro de jurisprudência é de molde a invalidar tudo o que vem a seguir, onde o juiz vai identificar um conjunto de expressões que eu não poderia ter dito em relação à Cuatrecasas e que, no seu entender, configuram o crime de ofensa a pessoa colectiva.
O meu comentário da sentença poderia, portanto, terminar aqui, só que não satisfaria a curiosidade natural dos leitores em saber quais são afinal as expressões que o juiz considera proibidas em relação à Cuatrecasas.
Por isso, vou prosseguir.
O juiz começa por passar em revista várias expressões que pronunciei no meu comentário - como "palhaçada jurídica", "promiscuidade entre a política e a advocacia", "advogado de vão-de-escada" - mas a nenhuma delas atribui importância, considerando que estão protegidas pelo direito à liberdade de expressão.
Até que chega o momento crucial, e passo a citar:
"Mas há um ponto, em todo o comentário, que não pode ser analisado desta forma.
Diz o arguido o seguinte:
'veio sob a forma de uma sociedade de advogados Cuatrecasas, de que é Director o Dr. Paulo Rangel, político e eurodeputado do PSD.
Foi basicamente a produção deste documento pela sociedade de advogados de que é Director o Dr. Paulo Rangel que levou o Hospital de São João a paralisar a obra com medo das consequências, sobretudo um dos administradores que ficou muito preocupado. O presidente do Hospital é um grande entusiasta desta obra, mas uma das coisas que a sociedade de advogados Cuatrecasas, do Dr. Paulo Rangel, produziu foi dividir a administração do Hospital de S. João'.
E depois concretiza melhor:
'Como político anda certamente a angariar clientes para a sua sociedade de advogados, clientes sobretudo do Estado: Hospital de São João, Câmaras Municipais, Ministérios disto e Ministérios daquilo. Quando produzem um documento jurídico a questão que se põe é: este documento é um documento profissional, de um jurista profissional ou, pelo contrário, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer?
Tudo pode acontecer! E neste caso, desta palhaçada, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer'
O que o arguido com estas palavras afirma é só isto: o arguido afirma que a Cuatrecasas elaborou um documento propositadamente contra os interesses do seu próprio cliente (o Hospital de São João, que assim não iria beneficiar da "obra boa", como refere o arguido) com o objectivo de beneficiar 'uma mão política que lhe dá de comer'."
É altura de interromper a citação para chamar a atenção para esta frase crucial do juiz: "O que o arguido com estas palavras afirma é só isto: (...)".
Já se adivinha aqui o desfecho: eu vou ser condenado, não por aquilo que disse, mas por uma afirmação que o juiz me põe na boca, e que eu nunca proferi.(*)
Eu estou a comentar o trabalho de um juiz, ainda por cima uma sentença, e estou a ser propositadamente contido, embora me assista em relação a ele e ao seu trabalho o direito à liberdade de expressão com toda a amplitude que é devida a uma figura que desempenha uma função pública e a um trabalho de natureza pública.
A razão da minha contenção é que eu gostei e apreciei bastante o trabalho do juiz. Ele tinha nas mãos, de longe, a tarefa mais difícil de quantos passaram por aquela sala de audiências (a consequência directa de judicializar uma questão que, na origem, era uma questão política). Já o referi anteriormente, considerando-o a figura do julgamento (cf. aqui), e voltarei ao assunto mais adiante.
Nunca tinha vivido uma situação destas numa sentença - a situação em que alguém me atribui uma afirmação que eu não fiz e que depois prossegue o seu argumento como se eu a tivesse proferido. Mas já a vivi centenas, senão mesmo milhares de vezes em conferências, debates académicos e televisivos, ou simplesmente em discussões entre amigos.
Como é que, com o tempo, eu aprendi a lidar com esta situação?
Assim: procuro tocar ao de leve no braço do meu interlocutor e dizer-lhe baixinho ao ouvido: "Páre lá com isso... que isso é batota...".
(Continua)
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(*) No trecho que, em parte, é sublinhado na sentença, e onde parece centrar-se a ofensa que o juiz me atribui, a Cuatrecasas nunca é mencionada. Na realidade, o sujeito é o Paulo Rangel: "Como político...". E se é certo que, a meio, o sujeito passa a plural, eu estou obviamente a generalizar a situação a todos os políticos que, como o Paulo Rangel, também são advogados. Não existe qualquer referência, nem sequer implícita, à Cuatrecasas.
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