III. A judicialização da política
Qual é então o mal de judicializar a política ou de transformar problemas políticos em problemas judiciais?
Compromete o atributo principal da função de juiz - a imparcialidade - diminuindo a confiança da população nos juízes.
Enquanto, a partir do século XVI, o protestantismo nascente se opunha à Igreja Católica, desenvolvia-se, ao mesmo tempo, na sociedade civil um movimento paralelo: a democracia partidária nascente opunha-se à monarquia absoluta.
Na monarquia absoluta, o rei é o guardião do bem-comum; na democracia partidária os juízes são os guardiões das liberdades democráticas. Os juízes são, por assim dizer, a aristocracia da democracia partidária, a sua elite. E se a monarquia absoluta entra em colapso quando a população perde generalizadamente a confiança na aristocracia, a democracia partidária entra em colapso quando a população perde generalizadamente a confiança nos juízes.
Os problemas políticos são problemas de opinião e os políticos decidem sobre opiniões, ao passo que os juízes decidem sobre factos. Uma opinião é sempre parcial - é minha e não de outrem - e, por isso, os problemas políticos são sempre partidários.
Quando se põe à discussão se se deve gastar mais no SNS, uma parte da população diz Sim e outra diz Não, e o local adequado para discutir esta questão é a esfera pública, o mercado livre das ideias. No fim, a decisão - Sim ou Não - dependerá do partido que juntar mais votos.
Neste processo, os políticos do Sim serão criticados pelos adeptos do Não e os políticos do Não pelos adeptos do Sim. Todos os políticos acabarão criticados e depreciados - os do Sim e os do Não -, e uma perda generalizada de confiança nos políticos é inevitável.
Se esta questão for transferida da esfera pública, onde pertence, para a esfera judicial, será um juiz a tomar a decisão. Se decidir Sim será criticado pelos adeptos do Não; se decidir Não será criticado pelos adeptos do Sim. Em qualquer caso será criticado e contestado por uma parte da população.
Este juiz foi chamado a decidir sobre uma questão de opinião, e não de facto. Partidarizou-se e perdeu o atributo que é essencial a um juiz - a imparcialidade. Quando, amanhã, ele for chamado a julgar um crime em que é réu um conhecido político do Sim, a população vai desconfiar da sua imparcialidade; e o mesmo acontece se o réu for um político do Não.
O pior que se pode fazer numa democracia é judicializar a política, levar para dentro dos tribunais problemas que são políticos, e que deveriam ser resolvidos no mercado livre da discussão pública. Os juízes passam a assumir o papel que compete aos políticos, deixam de decidir sobre questões de facto para passarem a decidir sobre questões de opinião, são obrigados a abdicar da sua imparcialidade para se tornarem necessariamente parciais. As pessoas perdem a confiança na justiça e, a prazo, é a própria democracia que fica em risco.
Um grande exemplo está a ocorrer em Espanha (cf. aqui). Aquele que era um problema político por excelência - o independentismo catalão - a ser resolvido no espaço aberto da discussão pública através de um referendo, tornou-se um problema judicial que tem desgastado enormemente a confiança na justiça do país quer interna quer externamente.
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