19 junho 2018

Como morre uma democracia? (IV)

(Continuação daqui)

IV. Uma grande conspiração


Ao longo dos meses em que andei pelas salas de um tribunal e observei as pessoas que por ali andam, e aquelas que por ali não andam, aquilo que cada uma delas faz, e o que não faz, eu cheguei à conclusão de que todos parecem conspirar para dificultar a vida ao juiz.

Praticamente todos os que se movem na sala de audiências, aqueles que andam cá fora mas dentro do tribunal, as pessoas que caminham na rua indiferentes ao que se passa lá dentro, todos me pareciam conspirar para tornar mais difícil a função do juiz.

(Para mencionar somente um sinal - a ausência de pessoas das salas de audiência. É que a presença do povo nas salas de audiência ajuda sobretudo o juiz, transmitindo-lhe o sentimento de justiça da comunidade através do seu número, dos seus gestos, das suas exclamações.)

É como se todos se unissem num sussurro gigantesco e silencioso dirigido ao juiz "Não queremos que desempenhes bem a tua função!", que é a função mais importante numa democracia - a justiça. E que, por isso, é um sussurro que logo assume outro significado "Não queremos a democracia partidária!":

Não é um significado surpreendente numa cultura e num país que, à excepção de Espanha, foi aquele que mais combateu o protestantismo e o modelo político que o protestantismo trouxe consigo - a democracia partidária.

Olhando num universo mais vasto, para os três poderes do Estado, é como se dois deles - o executivo e o legislativo, sob a liderança do primeiro - se unissem numa grande conspiração contra o poder judicial para o descredibilizar, o impopularizar e lhe retirar o lugar cimeiro que ele ocupa numa democracia. E para, no lugar dele, colocar no pedestal o poder executivo, como é próprio das monarquias absolutas e dos regimes de tiranos.

O propósito da judicialização da política ou, em qualquer caso, o seu efeito não-pretendido é o de minar a credibilidade dos juízes, afastá-los do pódio que eles ocupam na democracia, para aí se colocarem os políticos, que são os titulares dos poderes executivo e legislativo. Mas, no dia em que isso acontecer, uma coisa deverá parecer óbvia aos olhos de todos: a democracia acabou.

Volto ao meu exemplo de Espanha. Portugal e Espanha têm sistemas de justiça muito parecidos, ambos herdeiros e conservando uma grande herança do sistemas de justiça da monarquia absoluta e da Inquisição. Nenhum deles conseguiu ainda realizar a separação completa de poderes que é própria da democracia, e o principal veículo de promiscuidade é o Ministério Público (Fiscalia), um órgão do poder executivo que vive incrustrado no poder judicial.

Foi o Ministério Público que judicializou a questão catalã, sob a liderança do Procurador-Geral José António Maza (entretanto falecido), um anti-independentista convicto, que abriu processos-crime aos independentistas catalães, e não descansou enquanto não os viu na prisão (preventiva).

Os principais protagonistas da questão catalã são hoje os juízes do Supremo, e não se estão a sair bem precisamente porque não estão vocacionados para decidir sobre questões políticas. As questões políticas envolvem parcialidade e partidarização, ao passo que os juízes estão vocacionados para decidir com imparcialidade. O desprestígio da justiça tem sido enorme, aos olhos da população espanhola e aos olhos da opinião pública internacional, onde tem sido mesmo alvo de chacota.

Os políticos - no caso, o governo de Mariano Rajoy - conseguiram passar para os juízes a impopularidade que naturalmente resulta de uma questão tão fracturante como é o independentismo catalão.

Finalmente, uma referência muito breve ao meu case study para ilustrar o mesmo ponto - como a judicialização da política é um veículo para os políticos transferirem a impopularidade das decisões que lhe cabem para os juízes e, a prazo, descredibilizarem a justiça, que o mesmo é dizer, a democracia.

O problema do Joãozinho era político. O Paulo Rangel deveria ter ido ao Porto Canal discutir o assunto comigo. Não o fez porque sabia que perdia e teria - ele e o seu partido - de acarretar com a impopularidade daí resultante. Em lugar disso, judicializou o problema utilizando a habitual correia de transmissão, o Ministério Público, que transformou a sua queixa em processo-crime.

No final do processo, quem ficou com os custos de impopularidade daquela decisão política que, através de um documento jurídico, visava impedir a obra do Joãozinho.? O Paulo Rangel e os seus correligionários políticos? Não. Leia os comentários dos leitores aqui e vai concluir que foi a Justiça.

1 comentário:

Stanimir Sperger disse...

Exmo. Senhor Dr. Arrojo,

V.Ex.ª é vítima: “Pedro Arroja condenado a pagar €9000 por comentários na TV … a Paulo Rangel” Lusa. 12.06.2018 às 15h31; Eu vai ser vítima em caso que perdo meu processo penal de injúria e difamação.

Apoie esta Petição. Assine e divulgue. O seu apoio é muito importante.

Eu sou a voz da petição pública, junto com 656 (seis centos e cinquenta e seis) signatários no dia 19.06.2018 para liberade de expressão “Contra Prisão por crime de Injúria e Difamação” http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT84903
“1. A constatação de que existem disposições obsoletas de criminalização da difamação em Portugal que não cumprem os padrões internacionais por uma margem alarmantemente ampla e um número invulgarmente elevado de condenações de Portugal no Tribunal Europeu de Direitos do Homem (TEDH) por violações do artigo 10º da Convenção Europeia de Direitos do Homem, muitas das quais relacionadas com a aplicação das leis da difamação;
2. O facto de a lei portuguesa oferecer, nesta matéria, protecção acrescida a quem tiver posições de poder, agravando em 50% as penas sobre crimes de difamação, o que pode ferir o principio de IGUALDADE perante a lei que a Constituição da República Portuguesa garante a TODOS os cidadãos;
3. Levam os subscritores desta Petição a solicitar que, no sentido de adequar a legislação portuguesa em matéria de difamação aos padrões internacionais, seja promovida pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias o acolhimento, a discussão e eventual aprovação na Assembleia da República das seguintes recomendações:
• Revogação do artigo 184º do Código Penal sobre a “agravação da difamação”, envolvendo agentes públicos;
• Revogação dos artigos 180 a 183º sobre difamação criminosa (no mínimo, as potenciais penas de prisão que tais artigos acarretam, devem ser eliminadas); …”.

Vamos mudar Portugal!

Stanimir Sperger