17 junho 2018

Como morre uma democracia? (II)

(Continuação daqui)

II. O cancro



Existem três poderes distintos numa democracia - o poder executivo (Governo), o poder legislativo (Parlamento) e o poder judicial (Tribunais).

Os políticos e os seus partidos actuam no âmbito do poder legislativo e do poder executivo e é aí que os vemos em acção, no Parlamento e no Governo. Já no âmbito do poder judicial os actores são os juízes.

Existem várias diferenças entre os políticos, enquanto titulares dos poderes legislativo e executivo, por um lado, e os juízes, que são os titulares do poder judicial, por outro. Mas existe uma que é absolutamente decisiva para a sobrevivência da democracia.

Trata-se da exposição à crítica pública de uns e de outros.

Criticar publicamente os políticos é normal numa democracia e é salutar, sobretudo se as críticas forem justas. Mas criticar publicamente os juízes é mortal para a democracia.

Numa democracia, os políticos vivem agrupados em partidos, e isto é assim porque todas as questões públicas dividem a população. Ponha-se à discussão pública se se deve gastar mais ou menos dinheiro no SNS, e a divisão de opiniões na sociedade vai emergir. Faça-se o mesmo em relação à privatização ou não da Caixa Geral de Depósitos e o resultado será o mesmo - a divisão da opinião pública.

Os partidos são as instituições que, numa democracia, congregam aqueles grupos de pessoas que possuem opiniões semelhantes em relação à coisa pública, e diferenciam-se uns dos outros por representarem opiniões diferentes - e, às vezes, até opostas - acerca delas. Daí a sua exposição inevitável à crítica pública. Quem pensa que a  CGD deve ser privada não pode ser manso para aqueles que pensam que ela deve ser pública, e vice-versa.

A divisão pública acerca dos partidos arrasta-se aos políticos que os representam e resulta numa inevitável perda de confiança nos políticos. O cidadão que é adepto do partido A não tem confiança nos políticos do partido B para governarem o país. E a recíproca também é verdadeira. Uma certa dose de desconfiança generalizada nos políticos é, por isso,  inevitável numa democracia. E é até saudável, se não for excessiva.

Daí não vem mal ao mundo e certamente que não à democracia.

E se a população desconfiar dos juízes?

Aí a questão torna-se muito mais complexa  e, se a dose de desconfiança fôr grande, pode mesmo ser fatal para a democracia.

É que, no meio da discussão pública e permanente, que é própria de uma democracia, são os juízes que decidem em última instância, o que é justo e o que não é justo, o que é  bem e o que é  mal, o que é comportamento aceitável e o que é crime, o que é legal e o que não é legal, o que é de um e o que é de outro.

Se a população perde a confiança nos juízes, fica-se sem saber o que é justo e o que não é justo, o que é bem e o que é mal, o que é comportamento aceitável e o que é crime, o que é legal e o que não é legal, o que é de um e o que é de outro. É a desordem absoluta, vale tudo, instala-se a lei do mais forte, é o caos. E o fim da democracia.

É portanto absolutamente imperioso que, numa democracia, o poder judicial esteja blindado da política partidária e dos políticos para evitar qualquer espécie de contaminação. É que, enquanto os partidos e os políticos dividem a população, são os juízes que a unem através da confiança que a população deposita neles.

Agora, a questão: na democracia portuguesa, o poder judicial está blindado da influência dos partidos e dos políticos?

Não. Bem pelo contrário.

O Ministério Público é um órgão do poder executivo, e portanto um órgão político, sujeito à influência dos partidos e dos políticos, tanto assim que o seu chefe - o Procurador-Geral da República - é escolhido pelo Governo (e depois nomeado pelo Presidente da República).

E, em Portugal, onde é que este órgão actua?

Dentro da esfera do poder judicial. Está dentro dos tribunais e tem mesmo poderes judiciais (isto é, poderes para aplicar penas, como a prisão preventiva).

É o cancro. É o Ministério Público que leva a política para dentro do sistema de justiça e até ao coração do sistema de justiça - os tribunais. É ele que judicializa a política.


(Continua)

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