22 fevereiro 2017

Paz

Há semanas, procurei pôr-me aqui no espírito de F. A. Hayek - considerado o pai do liberalismo moderno - para procurar saber quais as interrogações que em 93 anos de vida dedicada à causa do liberalismo,  ele levou consigo para a eternidade.

Fi-lo com base no seu último livro ("The Fatal Conceit" e o subtítulo "The Errors of Socialism") e, em particular, com base no último capítulo deste seu último livro que tem o título sugestivo "Religion and the Guardians of Tradition". Este capítulo causou calafrios em muitos dos seus seguidores, como o próprio autor admite, mas ele resolveu, não obstante, incluí-lo. Trata-se do tema da religião que, desde Kant pelo menos,  está proibido aos intelectuais e cientistas, como ele.

Hayek acreditava que o capitalismo era um sistema económico muito superior ao socialismo, uma crença que não é difícil partilhar. Que o capitalismo assentava em certos valores ou tradições, como a propriedade privada, a honestidade, o cumprimento das promessas, etc. Que estas tradições - e aqui estava a parte irritante do livro - foram guardadas e trazidas à actualidade sobretudo pela religião.

Mas tendo chegado aqui, e perante a questão óbvia seguinte que era a de saber quem criou e para quê esses valores ou tradições, Hayek parou e remeteu o assunto para os teólogos:

So far as I am personally concerned I had better state that I feel as little entitled to assert as to deny the existence of what others call God, for I must admit that I just do not know what this word is supposed to mean. I certainly reject every anthropomorphic, personal, or animistic interpretation of the term through which many people succeed in giving it a meaning. The conception of a man-like or mind-liking being appears to me rather the product of an arrogant overestimation of the capacities of a man-like mind. I cannot attach meaning to words that in the structure of my own thinking, or in my picture of the world, have no place that would give them meaning. It would thus be dishonest of me were I to use such words as if they expressed any belief that I hold.
I long hesitated whether to insert this personal note here, but ultimately decided to do so because support by a professed agnostic  may help religious people more unhesitantingly to pursue those conclusions that we do share. Perhaps what many people mean in speaking of God is just a personification of that tradition of values that keeps their communities alive.
(op.cit., pp. 139-40)

O ponto importante aqui é o de um racionalista que prossegue o caminho da razão por onde ela o leva, até que chega o momento em que, tendo o caminho entrado no domínio da religião, ele pára à entrada, e recusa utilizar a razão para prosseguir o caminho.

O argumento de Hayek em favor do capitalismo ficou incompleto. Ele faz uso de uma razão amputada, que serve em certos domínios mas não em outros, como a religião. Fica-se mesmo na dúvida de que, sendo a razão incompetente para trilhar certos caminhos, se será competente para trilhar os caminhos que ele a fez trilhar.

Eu penso que Hayek, a despeito da sua honestidade, estava errado acerca dos limites da razão. O argumento, indo da frente para trás, tem continuidade racional.

É assim:

Quem criou a propriedade privada (vou cingir-me apenas a este valor de suporte ao capitalismo) foi o mesmo Criador que criou o sol, o mar e a lua. É Deus. Ao criar o sol, o mar e a lua Ele visava atingir certos bens para todos nós - ele visava o bem comum. Mas nem só de sol, mar ou lua vive o homem. Por isso, Ele também criou certos valores - um código de moralidade, chamemos-lhe assim - incluindo o da propriedade privada, sem os quais a nossa vida seria impossível.

E Deus, podendo assumir qualquer forma - como a do sol ou a da lua ou qualquer outra, no fim de contas Ele é o Criador de tudo - também pode assumir forma humana ou antropomórfica. Na realidade, a propriedade privada (e todos os outros valores) são-nos transmitidos por Deus assumindo forma humana, um argumento que concretizarei já a seguir.

O paganismo não estava totalmente errado quando adorava o sol, o mar ou a lua. Deus também está neles e também se revela através deles. Mas aquilo que o Cristianismo veio fazer foi integrar o paganismo numa verdade mais abrangente e centralmente humana.

Deus revela-se através do sol, do mar e da lua, mas revela-se, em primeiro lugar, a através das pessoas - e a figura paradigmática desta revelação pessoal é Cristo.  Existe Deus em cada ser humano e Deus revela-se mais através de cada ser humano do que através do sol, do mar ou da lua. O Cristianismo pôs a pessoa humana no centro da revelação e criou uma hierarquia onde vêm a seguir os outros elementos da natureza e as obras humanas.

O célebre Cântico ao Irmão Sol de S. Francisco de Assis exprime Deus em todas as obras da natureza, e não fosse o igualitarismo radical, tipicamente franciscano, que põe o homem ao mesmo nível do sol e dos animais, e seria uma descrição perfeita daquilo que pretendo afirmar. Falta-lhe, contudo, a hierarquia.

A propriedade privada foi criada por Deus e é revelada por Deus em forma antropomórfica. É-nos transmitida, em primeiro lugar, pela nossa mãe, embora também pelo pai e muitas outras pessoas, em uma miríade de episódios que ocorrem muito cedo na nossa vida.

Por exemplo, quando o irmão mais novo desata a chora porque o mais velho lhe tirou o brinquedo. Nessa altura, a mãe vai junto deles, tira o brinquedo da mão do mais velho e entrega-o ao mais novo com as seguintes palavras, dirigidas ao mais velho: "Dá esse o brinquedo ao teu irmão porque é dele". E depois, pegando num outro brinquedo que jazia abandonado no chão, coloca-o na mão do mais velho com as palavras: "Brinca com este porque este é que e teu".

Hayek recusou entrar no domínio da religião porque não se sentia capaz, mas também, talvez, por causa das surpresas que podia encontrar. E iria encontrar de certeza. É que o comportamento da mãe, que instila nos filhos o sentimento da propriedade privada, não é ditado por nenhuma consideração de eficiência económica.

Também não é por considerações de ordem económica que, chegada a hora do almoço, ela põe na mesa um prato para cada filho, e a respectiva comida lá dentro, em lugar de servir os dois filhos num prato comum (do ponto de vista da eficiência esta solução seria preferível porque com menos recursos serviria o mesmo fim, que era o de alimentar os dois filhos).

Nem o comportamento da mãe é ditado por qualquer perspectiva egoísta de bem-estar individual, porque é claro que a sua intervenção, nos dois exemplos citados, vai contra o bem-estar do filho mais velho, que queria era brincar com o brinquedo do irmão mais novo, no primeiro caso, ou deitar a mão à sua comida, no segundo.

A intervenção da mãe faz-se em nome de um bem muito maior, que não é necessariamente um bem para este ou para aquele, mas um bem para todos, um bem comum - a paz familiar. Ninguém consegue viver numa família onde os mais novos passam a vida a berrar ou porque os irmãos mais velhos lhes tiraram os brinquedos ou porque lhes deitaram a mão à comida que era devida a eles.

Paz para todos, que é um bem comum, e não eficiência económica, que é um bem geralmente privado, é que é a verdadeira razão pela qual Deus criou a propriedade privada. Que ela também promova a eficiência económica é um subproduto - e nem sequer muito importante - desta racionalidade original e divina.

6 comentários:

Ricciardi disse...

O normal é a mãe persuadir o proprietário do brinquedo para deixar o irmão usa-lo. Nao sejas egoísta e deixa o teu irmão brincar com o teu brinquedo.
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Ou seja, embora a propriedade seja de um deles, o benefício deve ser partilhado. A bem, de preferência. Se não for a bem a mãe lança represálias compensatórias. Não raras vezes usa a autoridade para tirar ao proprietário o brinquedo para atribui-lo ao outro.
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Em sociedade é a mesma coisa. O estado colhe impostos a uns para distribuir por outros.
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Anyway, Deus criou a propriedade comum, o sol, a lua, a terra. A privada foi criada pelos homens em função dos méritos próprios de cada um.
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Rb


J H P disse...

A privada foi criada por Deus porque Deus fez o Homem com necessidades e desejos infinitos, mas fez a matéria e o tempo finitos.

JHP

Ricciardi disse...

Deus terá criado a energia ou a energia sempre existiu numa forma ou noutra, não se sabe. Não precisou de criar mais nada. Tudo se explica apartir dum momento longínquo onde a energia foi libertada.
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Um gajo sabe lá. Há 5000 anos o pessoal sabia ainda menos. Hoje sabemos mais. Até vemos estrelas em formação (Deus não aparece nos telescópios) e planetas e luas tudo a girar à volta uns dos outros.
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O nosso próprio planeta está a rodar todos os dias a 12 mil Km por hora é este a rodar a 120 mil Km por hora à volta do sol e este a rodar 1 milhão de milímetros por hora à volta duma Galácia e está a roda à volta doutras galáxias e estás a volta doutras. Imagino que deve haver um ponto central sobre o qual tudo anda à volta. Será Deus?
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Deve ser.
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Rb

A paz do Senhor disse...

O tema da religião está proibido desde Kant? E esse tal Hayek é o melhor exemplo disso? Como eu afirmei noutro post, a Filosofia (e a Filosofia da religião) não começou, nem acabou, na Idade Média, mas também não acabou com Kant, ó Arroja. Se, em vez de andar a ler esse tal Hayek, estudasse o chamado Idealismo Alemão (que culmina no Hegel), iria perceber que essa proibição nunca aconteceu, e iria descobrir que quem defendeu essa Razão total que entra no domínio da religião, que a desmistifica, e que a supera foi, precisamente, o Hegel, com a sua filosofia do Idealismo Absoluto. Porque, como disse o Hegel, o assunto a que a Filosofia e a religião (e a arte) se dedicam é o mesmo, aquilo que as distingue é a forma como o fazem, pois enquanto a Filosofia tem um discurso conceptual e racional, a religião caracteriza-se por ser figurativa e metafórica.
Ora, a verdade é que o "desenvolvimento racional" exposto pelo Arroja não tem nada de racional, mas é antes um tipo de discurso que continua a ser figurativo, e que por isso mesmo não cumpre o que prometia. Para além disso, é um discurso que pretende legitimar o capitalismo pela instrumentalização da ideia de Deus, o que quer dizer que, sem querer, o Arroja está a dar razão àquele "hegeliano" materialista que considerou que a religião mais não é do que uma de alienação, isto é, uma imagem invertida do mundo e uma expressão ideológica desse mesmo mundo. É que se Deus criou a propriedade privada, como o Arroja afirma, então temos de concluir que Ele criou não só a propriedade privada capitalista, mas também a propriedade privada de escravos, ou não fosse Deus "O Senhor" e nós os seus servos. Não, Arroja, Deus não criou a propriedade privada para haver paz, mas sim para estabelecer uma determinada ordem social, essa ordem onde os senhores mandam e os servos obedecem. Só que como no capitalismo quem manda é o capital, esse Senhor nascido há mais de 2000 anos já não está entre nós, morreu. Ou se calhar transfigurou-se e passou a ser conhecido por... Mamon.

marina disse...

a Deus o que é de Deus , a César o que é de César ( neste caso aos homens o que é dos homens ) . fundamento divino para a propriedade privada? Jesus , OMG!! também não precisa exagerar ,PA . e tenho ideia que Cristo não ligava pevide à propriedade...talvez tivessemos herdado poucos genes Crísticos , digo eu , para estarmos sempre com o " meu meu é meu " na boca.

Pedro Sá disse...

Esse raciocínio só seria possível excluindo o conceito cristão de Deus e reconduzindo este às energias universais.