(Continuação daqui)
374. Antero de Quental
Num post anterior referi um acontecimento marcante da repressão à liberdade de expressão em Portugal - o encerramento das Conferências do Casino em 1871.
Esse encerramento foi decretado depois da apresentação por Antero de Quental de um brilhantíssimo ensaio com o título "As causas da Decadência dos Povos Peninsulares" (cf. aqui) onde, retomando ideias desenvolvidas por Alexandre Herculano - o maior intelectual liberal português do século XIX - apresentava um certíssimo diagnóstico acerca da perda de influência de Portugal e Espanha no mundo a partir do século XVI.
A repressão às ideias e à inteligência de que falava Antero fez com que a mesma tese viesse a ganhar reconhecimento internacional, não com o seu nome, mas com o nome do sociólogo alemão Max Weber no livro "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Por cá, uns anos antes, Herculano dava o último suspiro proferindo a célebre frase "Isto até dá vontade de morrer" e Antero punha fim á própria vida num banco de jardim de Ponta Delgada, nos Açores.
Antero é implacável em relação aos jesuítas, e são os jesuítas que estão hoje de volta, mais influentes do que nunca, na figura do Papa Francisco e, a nível doméstico, em figuras com o porta-voz laico da Igreja Católica, o juiz Pedro Vaz Patto, que pertence a uma movimento católico que já apelidei como "os jesuítas de saias" (cf. aqui).
A ciência moderna é também um tema central no ensaio de Antero e esta semana têm estado a ser anunciados os Prémios Nobel da Ciência. Como é habitual, não existe um só oriundo dos países católicos do sul da Europa (Portugal, Espanha ou Itália) ou dos seus descendentes na América Latina. Mesmo a Economia, cujo Nobel foi instituído em 1968, nunca teve um só laureado oriundo destes países. (Neste último domínio, eu receio que qualquer economista capaz de ganhar o Prémio Nobel em algum destes países católicos, antes de o conseguir, acabaria na prisão).
É este o legado do catolicismo contra a cultura e as instituições de uma sociedade livre - um deserto científico e de ideias. E, não conseguindo sobrepor-se pela força das ideias, sonha em pôr os liberais na prisão, na década de 1870, como agora, passados 150 anos.
Felizmente, agora existe o TEDH e outras instituições liberais internacionais (cf. aqui) para contrariar aquele que é para Fernando Pessoa, e também para Salazar e para mim próprio, o maior defeito da cultura portuguesa, também ele associado à cultura católica saída do Concílio de Trento - o seu provincianismo.
Os primeiros parágrafos do ensaio de Antero são um verdadeiro pedido de desculpa por aquilo que vai dizer. E aquilo que ele tinha para dizer era verdade, uma verdade que, com mais ou menos intensidade, ainda hoje se mantém. Logo a seguir, o governo proibiria as Conferências do Casino. Disso se encarregou o Procurador-Geral da Coroa, Martens Ferrão. Na altura, a Inquisição já tinha dado lugar ao Ministério Público, que permanece até hoje a mais anti-liberal instituição portuguesa.
Eis algumas frases contendo teses centrais do ensaio:
*Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo tão pobre!
*Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno.
*A religião deixa de ser um sentimento vivo; torna-se uma prática ininteligente, formal, mecânica. ... A Inquisição pesava sobre as consciências como a abóbada dum cárcere. O espírito público abaixava-se gradualmente sob a pressão do terror...
*Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do Catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus.
*O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina.
*As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas!
*Sim, meus senhores! essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento, e depois a morte!
*O catolicismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa (...)
* (...) o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis.
*Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta!
*(...) as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência. Quem domina não é já a musa heróica da epopeia: é a Economia Política, Calíope dum mundo novo, senão tão belo, pelo menos mais justo e lógico do que o antigo.
*Domina todo este assunto uma lei económica, formulada por Adão Smith, um dos pais da ciência, nas seguintes palavras: «o capital adquirido pelo comércio e pela guerra só se torna real e produtivo quando se fixa na cultura da terra e nas outras indústrias.»
*A tradição, num símbolo terrivelmente expressivo, apresenta-nos Camões, o cantor dessas glórias que nos empobreciam, mendigando para sustentar a velhice triste e desalentada. É uma imagem da nação.
*Só o trabalho livre é fecundo: só os resultados do trabalho livre são duradoiros. Das colónias, que os Europeus fundaram no Novo Mundo, quais prosperaram? quais ficaram estacionárias? Prosperaram na razão directa do trabalho livre: o Norte dos Estados Unidos mais do que o Sul: os Estados Unidos mais do que o Brasil.
*A Austrália tem feito em menos de 100 anos de liberdade o que o Brasil não alcançou com mais de três séculos de escravatura! Fomos nós, foram os resultados do nosso espírito guerreiro, quem condenou o Brasil ao estacionamento (...)
*As causas, que indiquei, cessaram em grande parte: mas os efeitos morais persistem, e é a eles que devemos atribuir a incerteza, o desânimo, o mal-estar da nossa sociedade contemporânea. À influência do espírito católico, no seu pesado dogmatismo, deve ser atribuída esta indiferença universal pela filosofia, pela ciência, pelo movimento moral e social moderno (...). Já não cremos, certamente, com o ardor apaixonado e cego de nossos avós, nos dogmas católicos: mas continuamos a fechar os olhos às verdades descobertas pelo pensamento livre.
*Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado.
(Continua acolá)
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