20 junho 2024

A Decisão do TEDH (234)

 (Continuação daqui)



234. As donzelas que eu desonrei


O acórdão Almeida Arroja v. Portugal refere-se a um caso em que está em confronto o direito à honra dos advogados da Cuatrecasas, incluindo a do seu director, e o meu direito à liberdade de expressão.

Os advogados consideraram a honra mais importante que a liberdade de expressão, e o mesmo aconteceu com todos os juristas que passaram pelo processo na qualidade de testemunhas, de juízes ou de magistrados do Ministério Público. A única excepção foi a juíza Paula Guerreiro do Tribunal da Relação do Porto.

Depois, quando o caso chegou ao TEDH, sete juízes (quatro mulheres e três homens), por unanimidade, consideraram que a liberdade de expressão valia mais do que a honra.

O que é que existe na cultura dos juristas portugueses que os parou na Idade Média e os leva a considerar o valor medieval da  honra mais importante do que o valor moderno da liberdade de expressão?

Numa sociedade católica e tradicional como Portugal, o valor medieval da honra é um valor muito importante, sobretudo para as mulheres, como seria de esperar numa sociedade de cariz feminino.

Durante a minha adolescência nos anos sessenta do século passado,  ainda se dizia de uma rapariga que perdera  a virgindade que tinha sido desonrada.  Se isto era uma tragédia em tempos tão recentes quanto esses,  imagina-se o que seria na Idade Média. Uma menina que tivesse sido desonrada por um mancebo que não casasse com ela, tinha a vida desgraçada para sempre. Ninguém lhe pegava.

Hoje já não existem donzelas desonradas no país, mas na cultura conservadora de Portugal a honra foi conservada como um valor importante, sobretudo entre os juristas, como se pode ver a seguir: 


Artigo 24.º
Honras e tratamentos
1 - Nas cerimónias oficiais, o bastonário da Ordem dos Advogados tem honras e tratamentos idênticos aos devidos ao Procurador-Geral da República, sendo colocado imediatamente à sua esquerda.
2 - Para os efeitos previstos no número anterior:
a) O presidente do conselho superior, o presidente do conselho de supervisão, os membros do conselho geral, do conselho superior e do conselho de supervisão, o presidente do conselho fiscal, o provedor dos destinatários dos serviços e os presidentes dos conselhos regionais e de deontologia são equiparados aos juízes conselheiros;
b) Os membros dos conselhos regionais e dos conselhos de deontologia são equiparados aos juízes desembargadores;
c) Os membros das delegações, os delegados e os restantes advogados são equiparados aos juízes de direito.
3 - O advogado que exerça ou haja exercido cargos nos órgãos da Ordem dos Advogados tem direito a usar a insígnia correspondente, nos termos do respetivo regulamento.
4 - (Revogado.)
5 - (Revogado.)
  Contém as alterações dos seguintes diplomas:
   - Lei n.º 6/2024, de 19/01
  Consultar versões anteriores deste artigo:
   -1ª versão: Lei n.º 145/2015, de 09/09

  Artigo 25.º
Títulos honoríficos
O advogado que tenha exercido cargo nos órgãos da Ordem dos Advogados conserva honorariamente o título correspondente ao cargo mais elevado que haja exercido


Dir-se-ia que se trata de uma citação do Estatuto da Ordem dos Advogados do século XVI. Mas não, é uma citação do Estatuto da Ordem dos Advogados na sua mais recente versão, que data precisamente deste ano de 2024. (cf. aqui).

Mostra como o valor medieval da honra, que já não é um valor importante para as donzelas, continua a ser importante para os advogados. A esta luz, eu cometi um crime gravíssimo - desonrei advogados.

Os exemplares modernos das donzelas desonradas estão agora na advocacia, com a curiosidade de que só metade delas são do sexo feminino, o que torna o meu crime ainda mais hediondo e, aos meus próprios olhos, para além de qualquer perdão. 

É que as donzelas que eu desonrei eram todas homens.   

(Continua acolá)

Sem comentários: