10 agosto 2022

O sexo, o juiz e a igreja (II)

(Continuação daqui)


II. Sexo com menores: os ventos de França


Os últimos meses têm sido ciclónicos para a trilogia que envolve o sexo, o juiz e a igreja, e os próximos meses não prometem ser mais calmos.

Os ventos, que vinham de França, já se anunciavam turbulentos há vários anos, mas atingiram a máxima intensidade no passado mês de Outubro quando a Commission Indépendente sur les Abus Sexuels dans l´Eglise (CIASE), ao cabo de dois anos e meio de trabalho, publicou o seu relatório (cf. aqui).

O relatório foi recebido com os mais diversos adjectivos, e nenhum era simpático para a Igreja. Uns eram de espanto, outros de horror, outros ainda punham o ênfase na humilhação. O meu preferido foi accablant (cf. aqui), acabrunhante.

Era, na realidade, um relatório acabrunhante de sexo continuado e abusivo com menores dentro da Igreja ao longo de décadas com o conhecimento e o encobrimento da hierarquia.

Sexo e igreja.

E o juiz?

O juiz reagiu  à publicação do relatório com um interessante artigo no jornal online Sete Margens (cf. aqui, seguido de um outro, praticamente idêntico, no Observador, cf. aqui). O artigo começa por fazer referência ao relatório francês, mas sem dar quaisquer detalhes quanto ao seu conteúdo. Em seguida, desvaloriza-o, sugerindo que se trata de coisas que se passaram há muitos anos atrás, e acaba a falar de pornografia infantil e de ética sexual

Trata-se da típica técnica de relativização que faz parte da mecânica do silêncio vigente na Igreja (as outras são a ocultação e a negação, cf. aqui): fala-se brevemente e inocuamente do assunto, em seguida desvaloriza-se o assunto, e acaba-se a falar de um outro assunto que, segundo a perspectiva do autor, é muito mais importante.

Com base nos 11 mil depoimentos que recolheu durante os seus trabalhos, a CIASE estimou que, no período analisado (1950-2020), cerca de 330 mil crianças tinham sido abusadas no seio da Igreja Católica francesa, uma média de cinco mil ao ano. 

Mas havia um dado curioso. Das 330 mil crianças abusadas, 216 mil tinham sido abusadas por padres, ao passo que 114 mil, representando mais de um terço do total, tinham sido abusadas por laicos agindo no seio da Igreja. Este era um número impressionante. Então, como se não bastassem já os padres, qualquer malfeitor entra por ali dentro, cobre-se com o manto diáfano da Igreja, e desata a abusar livremente crianças?

Sim, é isso mesmo. Uma das partes mais interessantes do relatório refere-se precisamente aos abusos cometidos no seio dos movimentos laicais que nos últimos anos se desenvolveram dentro da Igreja, e de que o Movimento dos Focolares é um exemplo paradigmático.

O relatório diz que estes movimentos funcionam em regime de roda livre dentro da Igreja, sem qualquer controlo da hierarquia eclesiástica. Ora, se os padres que são educados para uma vida consagrada e estão sujeitos ao escrutínio dos seus pares e da hierarquia, abusam crianças, o que esperar de qualquer patife que se junta a um movimento laical e se cobre com o manto de santidade da Igreja?

Não surpreende que tenha sido durante os trabalhos da CIASE que, em 2020, rebentou o escândalo sobre os abusos sexuais de menores no seio do Movimento dos Focolares - uma seita religiosa laica aprovada pela Igreja Católica para suprir a quebra de fieis - e que levou à demissão de três dos seus mais altos responsáveis em França (cf. aqui).

Para controlar os danos, o próprio Movimento dos Focolares contratou a consultora britânica GCPS mas só para investigar os abusos de JMM, um membro dos Focolares que abusou crianças ao longo de mais de 30 anos entre a década de 60 e a década de 90 e que, entretanto, tinha sido expulso do Movimento em 2016.

O relatório foi publicado no passado mês de Março e é arrasador (cf. aqui).  JMM era um abusador serial de rapazinhos, os seus abusos eram do conhecimento da hierarquia em França e também em Rocca di Papa (Roma), onde se situa a sede do Movimento. JMM não era um caso isolado, pois existia uma cultura generalizada de abusos sexuais de menores no seio do Movimento. Finalmente, JMM era um amigo pessoal da fundadora, Chiara Lubich, sobre quem decorria um processo de beatificação no seio da Igreja.

Para o juiz, este relatório deve ter sido de mais. Ele próprio é um membro activo do Movimento dos Focolares porque - escusado será dizer - onde existe sexo e igreja, o juiz está lá metido. O relatório deitava por terra qualquer chance de Chiara Lubich, uma figura que ele tanto admira, algum dia vir a ser considerada santa. Finalmente, triste coincidência, JMM exerceu durante mais de 20 anos em França, a função que o juiz exerce desde há anos no seio do Movimento em Portugal - editor da revista Cidade Nova (Nouvelle Cité, na verão francesa, que é a revista oficial do Movimento).

No espaço de seis meses, este era o segundo relatório e, como o primeiro, verdadeiramente accablant. Também agora, havia sexo,  havia igreja e havia juiz, este metido entre os Focolares.

E como reagiu o juiz?

Desta vez, ficou em silêncio - um silêncio accablant.


(Continua)

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