04 agosto 2022

A mecânica do silêncio


 

Um dos aspectos que mais chamou a atenção dos comentadores sobre o relatório da CIASE sobre os abusos sexuais de crianças no seio da Igreja em França foi o seu carácter sistémico (cf. aqui).

Na verdade, o adjectivo sistémico aparece frequentemente ao longo do relatório, significando que os abusos eram generalizados, habituais, faziam parte da cultura da instituição.

Como é que uma instituição como a Igreja, que se apresenta ao público como sendo santa, consegue normalizar, ao longo de décadas (1950-2020), abusos sexuais sobre menores, de tal maneira que eles passam a fazer parte intrínseca do seu funcionamento? Que técnicas são usadas para se chegar a isto?

A resposta já foi dada noutro post - ocultação, relativização e negação (cf. aqui) - mas vale a pena voltar a ela citando um livro da autoria de três jornalistas franceses sobre o mesmo assunto, publicado em 2016.

O livro tem o título sugestivo "Église - La mécanique du silence":

"Le livre raconte le système d’exfiltration mis en place par l’Église de France pour écarter les prêtres abuseurs… non pas des enfants mais des juges : mise au vert, mise en congé sabbatique, placement en abbayes ou mutation à l’étranger. 

Comment l’institution s’est-elle protégée en couvrant ses prêtres, sans jamais les dénoncer à la justice ? Et si le scandale était, au-delà des faits eux-mêmes, ce système organisé pour l’étouffer ?" (cf. aqui, ênfases meus).


O livro interroga-se sobre se o grande escândalo, mais ainda do que o dos abusos sexuais de crianças, não será o do sistema destinado a ocultá-los.

A tese principal do livro é que a técnica mais usada pela hierarquia católica para manter o status quo dos abusos sobre crianças é a técnica do silêncio (ou do encobrimento ou da ocultação) -  os perpetradores são deslocados de uma paróquia para outra, de uma função para outra, são-lhes oferecidas férias sabáticas, mandados para o estrangeiro, e assim por diante, tudo com o propósito de os manter longe não das crianças, mas dos juízes e, portanto, da justiça.

É interessante que em França a hierarquia católica procure manter os prevaricadores afastados dos juízes e, portanto, da justiça, porque em Portugal é ao contrário, há juízes que se juntam à hierarquia católica (cf. aqui).

-Para punir os perpetradores?

-Não. Para os encobrir (cf. aqui). 

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