22 março 2022

Jurisprudência de cordel (3)

 (Continuação daqui)


3. Seria difícil


A lei  94/2021 que ontem entrou em vigor vem pôr fim à jurisprudência de cordel do Tribunal Constitucional que negava o direito constitucional ao recurso a quem, em processo-crime, tendo sido absolvido em primeira instância, fosse condenado inovadoramente na Relação em pena não-privativa de liberdade (v.g., prisão suspensa, multa, trabalho comunitário).

Embora o assunto tenha sido abundantemente tratado neste blogue, vale a pena resumir a história desta obra-prima da jurisprudência constitucional portuguesa, e olhá-la a uma nova luz.

A Constituição prevê o direito ao recurso em processo penal no seu artº 32º. Este direito tem em vista que uma condenação só se torne efectiva depois de confirmada por um tribunal superior, assegurando, assim, a chamada "dupla conforme". O objectivo é evitar erros judiciários - e, em especial, o maior erro de todos, que é o de condenar um inocente - ou casos de corrupção na justiça em que um juiz, movido  por interesses político-ideológicos, económicos ou outros, que deveriam ser estranhos à justiça, condena deliberadamente um inocente. (Nos casos em que a justiça está ao serviço do poder político é por esta via que se calam ou eliminam os dissidentes)

Em Fevereiro de 2013 foi publicada a Lei 20/2013 que, tendo em vista reduzir a carga de trabalho sobre os juízes do Supremo, dava nova redação ao artº 400, alínea e) do Código do Processo Penal, só admitindo recursos para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos de Tribunais da Relação contemplando penas superiores a 5 anos de prisão.

Esta lei entrava em conflito com a Constituição e era obviamente inconstitucional. Acontecia assim em todos os casos em que um arguido tivesse sido absolvido em primeira instância, mas condenado na Relação em pena de prisão inferior a 5 anos ou em pena não-privativa de liberdade (v.g., prisão suspensa, multa, trabalho comunitário). O recurso desta condenação inovadora na Relação seria para o tribunal imediatamente superior, que é o Supremo Tribunal de Justiça. Porém, a lei 20/2013 inviabilizava este recurso.

Qualquer estudante do primeiro ano de Direito sabe que, em caso de conflito de leis, o assunto se resolve pelo princípio da hierarquia das leis, segundo o qual a lei de ordem superior (no caso, a lei constitucional) prevalece sobre a lei de ordem inferior (no caso, a lei ordinária 20/2013). 

Mas como é que os juízes do TC justificariam aquilo que ganham mais as prebendas de que gozam (como os célebres popós de alta cilindrada, cf. aqui), se dessem aos problemas as soluções que até um estudante do primeiro ano de Direito sabe dar?

Seria difícil. 

Eles tinham de complicar a coisa. E foi isso que fizeram.

Os resultados são de bradar aos céus. Até que a lei 94/2021 veio ontem pôr fim à palhaçada quando reescreve a alínea e) do artº 400º do CPP, que passa a dizer assim:

 "Não é admitido recurso (...) e) de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória de primeira instância" (cf. aqui, ênfase meu).

Quer dizer, independentemente da pena, quem for absolvido em primeira instância e condenado na Relação, passa  a poder recorrer [para o Supremo]. Era isto que a jurisprudência de cordel do TC proibia quando a pena fosse não-privativa da liberdade, negando o direito constitucional ao recurso a quem se encontrasse nesta situação.


(Continua)

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