22 março 2022

Jurisprudência de cordel (2)

 (Continuação daqui)


2. Conveniência de serviço


Dentre todas as críticas que, na semana passada, o juiz Henrique Araújo fez à "Lei do impedimento dos juízes e de outras alterações na Estratégia Nacional Anticorrupção", que ontem entrou em vigor, não existe uma  que seja guiada por critérios de justiça (cf. aqui).

O juiz Henrique Araújo é o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura (CSM), que é o órgão de governação dos juízes. Talvez por isso, as críticas do juiz à lei são guiadas exclusivamente por critérios de conveniência de serviço. 

A importância que o Estado adquiriu na sociedade portuguesa ao fim de quase 50 anos de governação socialista (em termos económicos, ele representa hoje metade da economia nacional) está bem patente na intervenção do juiz Henrique Araújo. Um Estado com esta dimensão e importância tem obrigatoriamente de gerar uma casta - a casta dos funcionários públicos que generosamente trazem a felicidade ao povo. O Estado socialista traz a igualdade para todos, desde que sejam eles em primeiro lugar.

Por isso, se a lei contribui ou não para promover e melhorar a justiça no país é um aspecto secundário para o juiz Henrique Araújo. Aquilo que é relevante para ele é que a lei representa um grave inconveniente para os serviços. Com todos aqueles novos impedimentos para os juízes, como é que os serviços do CSM e do Ministério da Justiça vão agora gerir a afectação dos juízes aos diferentes processos?

Vai ser uma tragédia.

E o que dizer daquela cláusula da nova lei que restaura o direito constitucional ao recurso a todos os cidadãos que a jurisprudência de cordel do Tribunal Constitucional tinha sonegado a alguns? (Trata-se da nova redação da alínea e) do artº 400º do CPP, cf. aqui).

Ora, o que é que isso interessa - negar direitos constitucionais aos cidadãos -, quando comparado com o fardo que é os juízes do Supremo terem mais trabalho? Na opinião do juiz Henrique Araújo, a conveniência de serviço, retirando trabalho aos juízes do Supremo, deve prevalecer sobre a garantia de um direito constitucional:

"Henrique Araújo criticou ainda a possibilidade de passar a apresentar recurso para o Supremo de casos em que a haja uma primeira condenação em sede da Relação e não apenas nos casos de reversão de absolvição em condenação em pena de prisão efectiva (...)" (cf. aqui)

A ministra da Justiça, que pertence à corporação, já veio dizer que a culpa da lei não foi dela (cf. aqui). Ficamos todos muito mais descansados, sobretudo quando se sabe que logo que termine o seu mandato no governo, a ministra é esperada como juíza no Supremo Tribunal de Justiça. Não convém desagradar aos futuros colegas e, principalmente, ao chefe. Ou melhor, parece que a ministra já se jubilou (é assim que a casta chama á reforma) do Supremo Tribunal de Justiça sem nunca lá ter posto os pés (cf. aqui).

Quanto a discutir se a lei promove ou não a justiça, nada. Só preocupações corporativas.

Eu julgo que a lei promove de maneira importante a justiça, pelo menos em dois aspectos, que têm sido tema neste blogue. Primeiro, promovendo a imparcialidade dos tribunais, corrigindo, em parte, um dos maiores defeitos da justiça portuguesa, herdado da nossa tradição anti-democrática e inquisitorial. Segundo, restaurando a universalidade do direito constitucional ao recurso que estava restringido pela jurisprudência de cordel do Tribunal Constitucional.

(Continua)

Sem comentários: