01 maio 2021

Marçanos da judicatura (IV)

 (Continuação daqui)


IV.  Medo

Na prática, o acórdão 31/2020 restabelece o direito constitucional ao recurso a todos os portugueses. Mas como ele contraria a jurisprudência de cordel do acórdão 595/2018 - permitindo agora o recurso para o Supremo  mesmo às pessoas que inovadoramente tenham sido condenadas na Relação em pena de multa -  é a própria Lei do Tribunal Constitucional que exige que o Ministério Público recorra para o Plenário do Tribunal.

O acórdão 31/2020 é de 16 de Janeiro de 2020 e normalmente dois meses seriam suficientes para se cumprirem as formalidades legais (v.g., vista por todos os juízes do Tribunal)  para que ele fosse agendado para a sessão plenária seguinte, uma tarefa que é da competência do presidente. 

Porém, o presidente Costa Andrade renunciou mais de um ano depois (Fevereiro de 2021) sem nunca ter levado o acórdão 31/2020 ao Plenário, e o novo presidente, João Caupers, leva já três meses no cargo e quanto a levar o acórdão ao Plenário, nada.

Pergunta: Por que é que o presidente Costa Andrade, primeiro, e agora o presidente João Caupers insistem em manter o acórdão 31/2020 na gaveta, quase um ano e meio depois de ele ter transitado em julgado  na 2ª Secção do Tribunal, e dez anos depois dos alegados crimes cometidos pelos guardas da GNR sobre o juiz Neto de Moura?

A resposta revela plenamente o carácter político do Tribunal Constitucional, pondo a nu o facto de ele ser um tribunal político e não um tribunal de justiça. A resposta também revela que no Tribunal Constitucional, o mais alto tribunal do país, uma criação do regime democrático, quem manda é a política, não é  a justiça. A resposta revela ainda que, no regime democrático português, a justiça está subordinada à política, violando um dos princípios basilares de uma verdadeira democracia, que é o princípio da separação de poderes. A resposta revela, enfim, que Portugal não tem uma democracia, mas uma ditadura, em que o ditador já não é Salazar, mas a aliança PS/PSD que desde sempre nomeia os juízes para o Tribunal Constitucional e para todos os altos cargos do governo e da administração pública.

A resposta é Medo. O presidente Costa Andrade primeiro, o presidente João Caupers depois, têm  um receio fundado - na realidade, têm a certeza prática - de que o acórdão 31/2020 será chumbado pelo Plenário, e têm medo das consequências políticas daí resultantes para o sistema de justiça e para o Governo.

Será mais um escândalo da justiça em cima daqueles que estão na praça pública. Os jornais vão noticiar que, ao contrário do que decidira em Janeiro de 2020, permitindo aos guardas da GNR o recurso para o Supremo da condenação que lhes foi imposta pela Relação - e que recebeu grande atenção mediática na altura (cf. aqui) - o mesmo Tribunal Constitucional decide agora o contrário, significando que os guardas da GNR ficam condenados a pagar as multas ao Estado e as indemnizações ao juiz Neto de Moura.

As consequências políticas podem ser desastrosas. O Comando da GNR, que tem atrás de si, nesta questão, a expressa solidariedade das outras forças de segurança (cf. aqui), não vai gostar desta decisão e aceitar pacificamente que os seus homens sejam condenados quando se limitaram a cumprir as suas funções no exercício da sua missão - multar um condutor que conduzia um carro sem matrícula nos arredores de Lisboa.

É praticamente certo que a opinião pública estará do lado dos guardas da GNR contra o sistema de justiça do país - tão desacreditado que ele já está -, contra a ministra da Justiça e contra o próprio Governo, que já o poderiam ter reformado. Este é um sistema de justiça que condena os inocentes - os guardas da GNR - e deixa os prevaricadores à solta - o juiz Neto de Moura. 

É o Medo, pelas consequências políticas da decisão do Plenário, que tem levado os presidentes do Tribunal Constitucional, a manterem o acórdão 31/2020 na gaveta desde há quase ano e meio.

É nisto que dá entregar a feitura da jurisprudência do sistema judicial de um país a militantes políticos, a marçanos da judicatura e não a verdadeiros juízes. As decisões  dos tribunais acabam a ser tomadas por considerações políticas e não por considerações de justiça.

E como é que eu sei tudo isto, em particular, que é praticamente certo que o acórdão 31/2020 será chumbado em Plenário?

Pois, é o que vou explicar a seguir.

(Continua)

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