30 janeiro 2021

Um grande bando de ladrões (4)

 (Continuação daqui)

"Um Estado que não se regesse
 segundo a justiça, reduzir-se-ia
 a um grande bando de ladrões."
S. Agostinho

4. Tribunais Administrativos e Fiscais


Imagine um grande bando de ladrões que possui os seus próprios tribunais. Cada vez que o bando comete um crime ou um abuso sobre alguém, é sempre julgado nos seus próprios tribunais. O lugar de réu nesses tribunais é monopólio do bando. E não apenas isso. O bando é o patrão dos juízes nesses tribunais. E é o bando que faz as leis do país.

A impunidade do bando é total. Ele pode cometer os roubos e os abusos que quiser, que será sempre julgado nos seus próprios tribunais, segundo as suas próprias leis, e por juízes que ele próprio controla.

Dir-se-ia que este cenário é puramente imaginário, que não existe tal bando de ladrões em parte alguma nem tais tribunais em país algum.  .

Existem sim, nunca foram foi racionalizados desta maneira, ou olhados segundo o ponto de vista de Santo Agostinho.

O bando de ladrões é o Estado de onde desapareceu qualquer sentido de justiça. E os tribunais são os Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF's). 

Na realidade, aquilo que caracteriza os TAF's é que são tribunais especiais que só julgam assuntos em que o Estado é réu, que são propriedade do Estado, que aplicam leis que são feitas pelo Estado e cujos juízes são pagos pelo Estado.

Os TAF's são, portanto, tribunais em que o Estado julga em causa própria, tribunais aos quais faltam os requisitos mais essenciais de uma justiça democrática - a independência e a imparcialidade - e, portanto, tribunais que não têm lugar num país democrático. Há muito que deveriam ter sido extintos.

O Estado é para ser julgado nos tribunais comuns, onde são julgados todos os cidadãos e instituições do país. O Estado tem de dar o exemplo na administração da justiça, e não pode dispor de tribunais especiais que, sendo a negação da justiça, fazem dele aquilo que Santo Agostinho previu em tais circunstâncias - um grande bando de ladrões.

A justiça é lenta em Portugal, e o país já foi condenado centena e meia de vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nas últimas três décadas e meia. As demoras na realização da justiça são a razão mais frequente que conduzem às condenações de Portugal pelo TEDH, violando o artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ("Direito a um processo equitativo", que exige que a justiça seja feita "num prazo razoável").

Imagine que um cidadão tem de pagar ao Estado 100 em impostos, mas o Estado cobra-lhe mil. Depois, com aquele discurso angélico do Estado de Direito, os políticos e a administração fiscal dizem que os direitos do cidadão estão protegidos porque ele pode recorrer da decisão do Fisco para os tribunais.

É neste momento que aparecem os TAF's que é onde o cidadão vai colocar a acção contra o Estado para reaver o dinheiro que lhe foi cobrado em excesso algo que, praticado por qualquer outra entidade ou pessoa, seria considerado um crime de extorsão e os seus autores estariam a ser julgados em vulgares tribunais criminais.

Se a demora na justiça é grande nos tribunais civis e criminais, nos tribunais administrativo e fiscais é muito maior. É que nenhum grande bando de ladrões alguma vez se prontificou a devolver aquilo que roubou à sua vítima. Aquele cidadão a quem o Estado cobrou mil quando apenas devia ter cobrado 100 vai esperar décadas até ver o seu dinheiro de volta, se é que alguma dia o verá.

(Foi uma situação destas no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que levou Luís Filipe Vieira alegadamente a corromper o juiz Rui Rangel para que este acelerasse um processo fiscal naquele tribunal, em que o presidente do Benfica tinha sido extorquido pelo Fisco, cf. aqui)

No seu artigo desta semana no Público (cf. aqui), o juiz Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, elenca três sugestões para a reforma da justiça, e a primeira não é surpreendente:

"Começo pela situação intolerável dos tribunais administrativos e fiscais (TAF) em que os cidadãos e as empresas esperam eternidades por uma decisão final"

Para logo a seguir concluir, desalentado:

"O problema dura há 25 anos, é conhecido e tem solução fácil e barata, mas a vergonhosa realidade é que o poder político não está interessado nisso".

Do ponto de vista de uma pessoa de bem, que é o ponto de vista do juiz Manuel Soares, a situação é incompreensível - as decisões dos TAF's demoram eternidades.

Mas do ponto de vista de um Estado que se tornou um bando de ladrões - que é o ponto de vista sugerido por S. Agostinho - a situação é perfeitamente compreensível: Qual é o bando de ladrões que se dispõe a devolver prontamente aos seus proprietários aquilo que lhes roubou?

(Continua)

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