(Continuação daqui)
V. A profecia cumprida
Enquanto, nos finais de 2019, se preparava no Tribunal Constitucional a redação do acórdão 31/2020 que permitia aos guardas da GNR, condenados inovadoramente em pena de multa na Relação, recorrer para o Supremo, um outro recurso pedindo exactamente a mesma coisa dava entrada no Tribunal Constitucional.
Era de um senhor, mais tarde identificado no acórdão, como recorrente A. que, num comentário televisivo, tinha chamado politiqueiro e jurista de vão-de-escada a um advogado, que também era político.
Como se sabe, os juristas são imensamente sensíveis à ofensa, e este advogado, que também era político, depois de ficar quase seis meses em casa, deprimido e cheio de dores de cabeça, resolveu pôr um processo por difamação ao senhor A, acompanhado de outro por ofensas à sociedade de advogados de que também era director.
A partir de agora, o filme dos acontecimentos é sempre o mesmo. O senhor A foi absolvido em primeira instância do crime de difamação ao advogado que também era político. O advogado, que também era político, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, seguindo o exemplo do seu congénere de Lisboa em casos semelhantes, e por razões obscuras que só agora são conhecidas, inverteu a decisão de primeira instância e condenou o senhor A a uma multa de cinco mil euros e a uma indemnização de dez mil ao advogado que também era político.
O senhor A estava na mesma situação dos guardas da GNR - condenado inovadoramente na Relação em pena de multa e desejando recorrer para o Supremo. E foi assim que em Novembro de 2019 dirigiu um recurso ao Tribunal Constitucional pedindo exactamente o mesmo que, meses antes, pedira o recurso interposto pelos guardas da GNR - a declaração de inconstitucionalidade da lei 20/2013 para o caso em que a condenação da Relação era em pena de multa.
Por um daqueles azares que acontecem uma só vez na vida, o recurso do senhor A foi distribuído a uma juíza do Tribunal Constitucional que tinha sido nomeada para este Tribunal pelo mesmo partido do advogado que também era político, e que era uma das partes no processo. E uma juíza que, curiosamente, tinha o mesmo apelido do advogado que também era político, e que era uma das partes no processo.
Este apelido viria, de resto a tornar-se famoso no país no verão logo a seguir por ser o apelido de um juiz que comprava e vendia sentenças no Tribunal da Relação de Lisboa, e traficava a distribuição de processos em conjunto com o presidente e outros juízes do mesmo Tribunal.
A resposta do Tribunal Constitucional nem se fez esperar. Numa Decisão Sumária datada do mês seguinte, Dezembro de 2019, e assinada apenas por aquela juíza que tinha o mesmo apelido e era do mesmo partido do advogado que também era político, e parte no processo, o recurso foi rejeitado.
O senhor A teve conhecimento desta decisão em Janeiro, precisamente no momento em que era publicado o acórdão 31/2020 em que o Tribunal Constitucional deferia para os guardas da GNR a mesma pretensão que indeferira para o senhor A.
O senhor A voltou, então, a recorrer para o Tribunal Constitucional, invocando a iniquidade e a diferença de tratamento em relação aos guardas da GNR, e pedindo que o Tribunal Constitucional se pronunciasse em colectivo, e não meramente através de uma juíza singular.
Desta vez a resposta demorou muito mais tempo e só chegou em Novembro passado.
Veio no acórdão 646/2020 (cf. aqui) em que foi relatora a mesma juíza que era do mesmo partido e tinha o mesmo apelido do advogado, que também era político, e que era uma das partes no processo.
Este acórdão reiterava a Decisão Sumária anterior da mesma juíza e negava ao senhor A aquilo que, em Janeiro, o acórdão 31/2020 concedera aos guardas da GNR - a possibilidade de recorrer para o Supremo de uma condenação inovadora na Relação em pena de multa.
Por isso, ao aproximar-se o final do ano de 2020, a história do direito ao recurso em Portugal podia resumir-se assim:
Desde a entrada em vigor da Constituição em 1976 que os portugueses gozaram livremente do direito ao recurso, previsto no artº 32º da lei constitucional. Porém, a criação em 1982 do Tribunal Constitucional introduziu um risco sobre este direito que se viria a materializar em 2013.
Neste ano, a lei 20/2013 retirou o direito constitucional ao recurso a um conjunto de portugueses, uma acção que foi validada pelo Tribunal Constitucional, que não declarou a lei inconstitucional. A partir desse ano, ficaram sem o direito ao recurso todos os portugueses que, tendo sido absolvidos em primeira instância, fossem condenados nas Relações em pena não privativa de liberdade (v.g., multa trabalho comunitário) ou em pena de prisão não superior a cinco anos.
Em 2018, por virtude do acórdão 595/2018, este conjunto de portugueses privados do direito ao recurso foi restringido somente àqueles que tivessem sido condenados inovadoramente nas Relações a penas não privativas de liberdade (v-g., multa, trabalho comunitário)
Até que, a partir de Novembro de 2020, por força dos acórdãos 31/2020 e 646/2020, se acabou, definitivamente, o direito ao recurso em Portugal.
A profecia de Ludwig von Mises ficou cumprida. O Tribunal Constitucional, desde a sua criação, demorou 38 anos a acabar com o direito constitucional ao recurso no país. A partir de 2020, o recurso deixou de ser um direito constitucional e passou a ser uma discricionariedade outorgada pelo Tribunal Constitucional a quem o Tribunal Constitucional quiser.
Resta acrescentar que o Tribunal Constitucional é controlado pela aliança PS/PSD (cf. aqui), às vezes também chamada "o sistema". Há 60 anos atrás "o sistema" chamava-se Salazar. O nome é diferente, mas a natureza é essencialmente a mesma.
(Continua)
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