(Continuação daqui)
IV. O segundo passo atrás
Na sua senda de tirar o direito ao recurso que a Constituição havia dado aos portugueses em 1976, o acórdão 595/2018 foi um grande passo atrás do Tribunal Constitucional, mas que se justificava por razões de sobrevivência do próprio Tribunal.
E foi assim que a partir do outono de 2018 a situação do direito ao recurso em Portugal passou a ser a seguinte. Para os condenados em primeira instância havia direito ao recurso para a Relação. Mas a situação era diferente para quem tivesse sido absolvido em primeira instância e condenado pela primeira vez na Relação.
Em relação a este último grupo de portugueses, havia direito ao recurso para aqueles que tivessem sido condenados em pena de prisão, mas já não havia direito ao recurso para aqueles que tivessem sido condenados em pena de multa ou em outra pena não privativa de liberdade.
Uma nova normalidade tinha sido estabelecida no Tribunal Constitucional em torno do direito ao recurso. A partir do outono de 2018, quem pedisse a declaração de inconstitucionalidade da lei 20/2013 ao Tribunal Constitucional, tendo sido condenado inovadoramente na Relação em pena de multa ou outra pena não privativa de liberdade podia estar certo que o seu recurso seria rejeitado, e a lei 20/2013 considerada constitucional.
Mas a nova normalidade não iria durar muito tempo. Menos de ano e meio depois do acórdão 595/2018 um outro acontecimento maior deflagrou no Tribunal Constitucional e que se conta em pouca palavras.
No longínquo ano de 2011, uma patrulha da GNR mandou parar um carro que circulava sem matrícula numa rotunda em Loures. O condutor não obedeceu à ordem de paragem e os guardas da GNR foram atrás dele até o conseguirem parar. Lá dentro estava um juiz que, perante a menção dos guardas em o multar, reagiu ao estilo do far-west, não de pistola na mão, mas sacando do seu cartão de juiz: "Vocês nem sabem com quem é que se estão a meter!...".
Os guardas não se deixaram intimidar e multaram o juiz. Não apenas isso. Fizeram queixa ao Comando acerca da atitude intimidatória do juiz e o Comando apresentou queixa contra o juiz ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), que é o órgão de disciplina dos juízes.
O CSM não viu razão para disciplinar o juiz ("O quê... um juiz agora já não pode circular num carro sem matrícula!?... Ao que isto chegou!... Era só o que faltava!...") e o juiz aproveitou para pôr uma processo por ofensas (denúncia caluniosa) aos guardas da GNR.
Agora, vai repetir-se uma história que se repete sempre e que tem o Tribunal da Relação de Lisboa como principal protagonista. Os guardas da GNR foram absolvidos em primeira instância, mas o juiz recorreu para a Relação de Lisboa onde tinha uns colegas amigos. A Relação inverteu a decisão de primeira instância e condenou os guardas numa multa de 2360 euros e a pagarem oito mil euros de indemnização ao juiz.
Por esta altura, o juiz tinha-se tornado nacionalmente conhecido por virtude de, num acórdão da Relação do Porto, onde agora prestava serviço, relativo a uma caso de violência doméstica, ter argumentado com base na Bíblia. Na comunicação social, a história do acórdão vinha agora invariavelmente acompanhada da história de 2011 com os guardas da GNR em Loures, gerando uma onda de dupla indignação em relação ao juiz e de grande simpatia para com os guardas da GNR.
Foi esta "batata quente" que deu entrada no Tribunal Constitucional em meados de 2019. Era uma verdadeira "batata quente" porque, com base no acórdão 595/2018 deste Tribunal, aos guardas da GNR era negado o direito ao recurso para o Supremo por terem sido condenados meramente em pena de multa na Relação.
Mas, agora que o caso era do domínio público, quem é que iria entender que, numa república democrática e constitucional, quatro cabos da Guarda Nacional Republicana, eram declarados criminosos no exercício das suas funções, enquanto um juiz safado mais um Tribunal da Relação corrupto ficavam ao fresco, levando o juiz para casa, ainda por cima, uma indemnização de oito mil euros, mais juros contados à taxa de 4% ao ano?
Ninguém. Da mesma forma que o Tribunal Constitucional não pode deixar ir para a prisão um deputado também não pode deixar condenar guardas da GNR no exercício das suas funções, sob pena de eles um dia deixarem de exercer as suas funções e a ordem constitucional, e com ela o próprio Tribunal Constitucional, desaparecerem às mãos de um qualquer grupo de revolucionários tresloucados.
Era preciso dar mais um jeitinho. E foi isso que o Tribunal Constitucional fez.
No acórdão 31/2020 de 16 de Janeiro (cf. aqui), o Tribunal Constitucional declarou que, afinal, a lei 20/2013 era inconstitucional, não apenas se estivessem envolvidas penas de prisão - como já declarara no acórdão 595/2018 -, mas também estando envolvidas penas de multa.
A comunicação social fez grandes parangonas deste acórdão, que permitia aos guardas da GNR recorrer para o Supremo da condenação que lhes tinha sido aplicada na Relação.
Porém, dentro do Tribunal Constitucional o ambiente era tenso e esta foi uma decisão relutante, em que quatro juízes empataram dois-a-dois e em que a decisão só prevaleceu por causa do voto de qualidade do presidente do Tribunal, que desempatou.
Não era caso para menos. Em pouco mais de um ano, era o segundo passo atrás que o Tribunal Constitucional dava na sua senda de acabar com o direito constitucional ao recurso dos portugueses.
(Continua)
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