16 dezembro 2020

O direito ao recurso (VI)

 (Continuação daqui)



VI. Pura ilusão

A ira do Comando da GNR, no verão do ano passado, era incontida quando tomou conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) que condenava quatro dos seus homens a uma pena de multa e a oito mil euros de indemnização ao juiz que, em 2011, circulava com um carro sem matrícula em Loures.

Dizia o comunicado:

"(...) serve o presente comunicado interno para transmitir que o Comando da Guarda irá expressar junto das entidades competentes - judiciais e da tutela -, o seu desagrado pelas afirmações indecorosas produzidas no âmbito do processo judicial". (cf. aqui)

O Comando assegurava ainda à comunicação social que continuava solidário com os seus homens e disponível para continuar a patrocinar a sua defesa judicial enquanto o presidente da Associação Profissional da GNR dizia que estava a ser preparada uma acção conjunta de protesto das forças policiais - GNR, PSP e SEF - contra decisão do TRL.

Ora, toda a gente sabe que nenhum regime político, incluindo uma democracia constitucional como é a portuguesa, gosta de ver os comandantes das forças policiais ou militares irados todos ao mesmo tempo. Existe o risco, nestas circunstâncias, de o regime ser sublevado e que o primeiro lugar a  ser varrido pelas armas seja precisamente o Palácio Ratton, onde funciona o Tribunal Constitucional. 

Por isso, quando, logo a seguir, os guardas recorreram para o Tribunal Constitucional a pedir que lhes fosse reconhecido o direito a recorrerem para o Supremo da decisão do TRL, o recurso foi parar ao sítio certo - a 2ª Secção do Tribunal Constitucional. 

O Tribunal Constitucional está dividido em três Secções que são outras tantas capelinhas em regime de guerra e rivalidade permanente entre si. As duas primeiras Secções são presididas pelo presidente do Tribunal, ao passo que a terceira é presidida pelo vice-presidente.

Ora, já no acórdão 595/2018, que declarou a inconstitucionalidade da lei 20/2013 para todas as penas de prisão, independentemente da sua duração, o presidente do Tribunal Constitucional tinha feito uma declaração de voto em que dizia que essa declaração de inconstitucionalidade deveria ser extensível também às penas de multa, pelo menos, às que tivessem sido aplicadas a pessoas singulares.

Disse ele então:

"O que  me leva a acreditar - e esperar - que em ulteriores pronunciamentos, o Tribunal Constitucional reequacione o alargamento do alcance do seu exame e dos seus juízos na direcção que fica sugerida. Pelo menos, na direcção de multa aplicada a pessoa singular" (cf. aqui, últimas linhas).

Ora, era precisamente isto que os guardas da GNR pretendiam quando recorreram para o Tribunal Constitucional - a declaração de inconstitucionalidade da lei 20/2013 no caso de multa aplicada a pessoas singulares. 

Foi, por isso, uma sorte que o seu recurso tivesse ido parar à 2ª Secção presidida pelo presidente do Tribunal (a 1ª Secção teria sido igualmente boa). Os guardas podiam contar a priori com o voto favorável do presidente, que é um voto de qualidade.

Na verdade, o acórdão 31/2020 que satisfaz a pretensão dos guardas da GNR acabaria por ter uma votação cerrada de 2-2 entre os juízes da 2ª Secção do Tribunal Constitucional e em que acabou por ser decisivo o voto de qualidade do presidente.

Idêntica sorte não teve o senhor A cujo recurso foi parar à 3ª Secção do Tribunal Constitucional  - a pior de todas para o mesmo fim - e às mãos de uma juíza que era do mesmo partido e tinha o mesmo apelido de uma das partes no processo (cf. aqui).

Mas para os guardas da GNR, pelo menos, a história parecia a caminho de ter um final feliz. O Tribunal Constitucional, através do acórdão 31/2020 da 2ª Secção, reconhecia aos guardas da GNR o direito a recorrerem para o Supremo da condenação que tiveram na Relação. E, tendo em conta a jurisprudência do Supremo nesta matéria, seria praticamente certo que seriam aí absolvidos.

Por isso, em Janeiro, quando o acórdão foi publicado, a comunicação social embandeirou em arco numa grande e justificada manifestação de simpatia para com os guardas da GNR.

Um jornal escreveu assim: "Guerra Neto de Moura vs. GNR. Guardas com luz verde para recorrerem para o Supremo" (cf. aqui). E uma estação de televisão noticiou assim: "[Os guardas da GNR] conseguiram agora autorização do Tribunal Constitucional para recorrerem para o Supremo".(cf. aqui)

Pura ilusão.

-Pura ilusão?

-Sim, pura ilusão

É que o Ministério Público recorreu do acórdão 31/2020 de 16 de Janeiro da 2ª Secção do Tribunal Constitucional para o Plenário deste Tribunal o qual, passado quase um ano, ainda não reuniu para este efeito.

Quer dizer, ao findar o ano de 2020, era dado praticamente como certo que o senhor A não iria poder recorrer para o Supremo. Mas, quanto aos guardas da GNR, não era nada certo que o pudessem fazer.

Era este o estado do "direito" constitucional ao recurso em Portugal a duas semanas de findar o ano de 2020 - arbitrariedade e incerteza, um mal a juntar-se a outro.

(Continua)

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