29 novembro 2020

A juíza Rangel (VIII)

 (Continuação daqui)


VIII. Azar dos azares

A regras do jogo, estabelecidas no acórdão 595/18 eram, portanto, as seguintes quando em 2019 o recurso dos guardas da GNR entrou no Tribunal Constitucional: só eram recorríveis para o Supremo as condenações ocorridas pela primeira vez nas Relações que implicassem penas de prisão; se a pena fosse de multa, trabalho comunitário ou outra pena mais leve, o arguido ficava privado do direito ao recurso que a Constituição lhe confere e não podia recorrer para o Supremo.

A declaração de voto que o presidente do TC, Professor Costa Andrade, fizera no acórdão 595/18 deixava perceber que ele considerava esta última situação uma injustiça (cf. aqui). Pois se a Constituição deve prevalecer sobre a Lei ordinária 20/2013, e se o artº 32 da Constituição diz que os cidadãos têm direito ao recurso sem qualquer qualificação a respeito da pena, então a declaração de inconstitucionalidade daquela lei deveria valer para todos os tipos de pena - incluindo as penas mais leves, como a pena de multa - e não somente para as penas de prisão.

Por isso, quando eu soube que os militares da GNR iam recorrer para o TC, rezei para que o recurso fosse parar à primeira ou à segunda secção, que são ambas presididas pelo presidente do tribunal, Professor Costa Andrade, e  não à terceira que é presidida pelo vice-presidente, Professor João Caupers (cf. aqui).

É que, indo parar à primeira ou à segunda secção do TC, os militares da GNR podiam contar, à partida, com o voto favorável do presidente da secção. Era uma vantagem considerável ter o voto favorável do presidente, que é quem desempata, no caso de divergência entre os outros  juízes da secção.

E Deus fez-me a vontade. O processo foi parar à segunda secção do Tribunal Constitucional - presume-se que aleatoriamente porque a distribuição dos processos nos tribunais do país é sempre aleatória para respeitar o princípio do juiz natural. (Ainda recentemente uma auditoria do Conselho Superior da Magistratura confirmou a aleatoriedade na distribuição dos processos nos tribunais superiores do país, cf. aqui).

O caso dos militares da GNR é um caso de injustiça que até faz doer o coração e é também, com elevada probabilidade, um caso de grossa corrupção no Tribunal da Relação de Lisboa semelhante àquele em que esteve envolvido o juiz Rui Rangel no seu processo contra o Correio da Manhã em que a distribuição do processo foi manipulada para favorecer o juiz Rangel - um caso de rangelismo.

Por isso foi com enorme satisfação que em Janeiro deste ano eu tomei conhecimento pelos jornais de que o Tribunal Constitucional tinha dado provimento ao recurso dos guardas da GNR: "Guerra Neto de Moura vs. GNR. Militares com luz verde para recorrerem para o Supremo". (cf. aqui).

De facto, no acórdão nº 31/2020 de 16 de Janeiro deste ano (cf. aqui), de que é relatora a "juíza conselheira" Mariana Canotilho, o Tribunal Constitucional, através da sua segunda secção, dá provimento ao recurso dos guardas da GNR e declara inconstitucional a Lei 20/2013 mesmo quando a pena envolvida é uma pena de multa, como era o caso dos guardas.

A decisão teve o voto favorável da relatora e do presidente da secção e o voto contra do "juiz conselheiro" Pedro Machete. 

Por essa mesma altura já tinha dado entrada no Tribunal Constitucional um recurso do senhor Jota que pedia exactamente o mesmo que os militares da GNR. O senhor Jota tinha sido absolvido num processo por ofensas (difamação agravada) ao senhor R no tribunal de primeira instância, cujo juiz seguiu a jurisprudência do TEDH. O senhor R recorreu para a Relação que, contra a jurisprudência do TEDH, inverteu a decisão de primeira instância e condenou o senhor Jota a pagar uma multa ao Estado e uma indemnização ao senhor R.

Condenado pela primeira vez na Relação por ofender o senhor R, o senhor Jota, fazendo uso do seu direito ao recurso, recorreu para o Supremo, mas o Supremo respondeu-lhe que, com base no acórdão 595/18 do TC, só podia apreciar recursos que envolvessem penas de prisão, o que não era o caso do senhor Jota. Foi então que o senhor Jota recorreu para o TC a pedir a declaração de inconstitucionalidade da Lei 20/2013 mesmo quando a pena é de multa.  

Tudo exactamente como no caso dos militares da GNR. Só que o senhor Jota teve um azar que os militares da GNR não tiveram, que foi o de o seu processo ter ido parar à terceira secção do TC - por distribuição aleatória, bem entendido, porque é assim que os processos são distribuídos nos tribunais portugueses - e não poder contar, à partida, com o voto favorável do Professor Costa Andrade para a sua causa.

A primeira decisão do TC foi uma decisão sumária a rejeitar liminarmente o recurso do senhor Jota ainda em Dezembro de 2019. Em Janeiro de 2020 o senhor Jota reclamou para a "conferência" (de três juízes da secção). O acórdão foi conhecido no passado dia 16 e é o célebre acórdão 646/20 que nunca mais aparece no site do Tribunal Constitucional.

Azar dos azares, dentro da terceira secção do TC, o processo senhor R vs. senhor Jota - por distribuição aleatória que é assim que são distribuídos os processos nos tribunais superiores do país - foi parar às mãos da juíza Rangel, que é a relatora do acórdão. 

Ora, acontece que no processo senhor R vs. senhor J,  o senhor R também se chama Rangel.

(Continua)

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