31 outubro 2020

1820 - O Liberalismo em Portugal (IV)

 (Continuação daqui)



IV. Súbditos e Cidadãos

Em 1820 Portugal tinha quase sete séculos de história, toda vivida sob um regime monárquico e, nos últimos séculos pelo menos, sob uma monarquia absoluta. Nestes sete séculos de história Portugal nunca tinha tido uma Constituição. Pois, nos dezoito anos que se seguiram à revolução liberal, Portugal teve nada mais nada menos do que três Constituições - as de 1822, 1826 e 1838.

Trata-se de um caso de passar do oito para o oitenta, de um extremo para o outro, uma manifestação típica da cultura católica portuguesa - cada coisa e o seu contrário, ambas levadas ao extremo.

Três Constituições num curto período de dezasseis anos são reveladoras da turbulência e da desorientação política e social que caracterizaram o liberalismo português saído da revolução de 1820. Mas há pelo menos um aspecto enfatizado pelo Professor Rui Albuquerque ao contrastar estas três Constituições que mantém a sua actualidade. Trata-se da questão da origem do poder.

A ideia da Constituição tem a sua origem mais remota na Magna Carta inglesa e visa limitar os poderes do Estado perante o indivíduo, ou afirmar os direitos individuais perante o Estado. Numa monarquia absoluta, que era o regime político vigente em Portugal antes da revolução de 1820, o Estado identificava-se com o rei, na frase consagrada de Luís XIV "L´État c'est moi".

A designação de revolução liberal atribuída à revolução de 1820 ofusca frequentemente uma outra realidade dessa revolução - a de que foi a primeira revolução democrática em Portugal. Foi o Liberalismo que, em 1820, trouxe a democracia para Portugal (e não o socialismo, que nessa altura nem sequer existia). Os pais da democracia moderna são os liberais, não os socialistas.

Ora, a natureza da democracia é colocar a origem do poder - ou a soberania - no povo, e não numa pessoa, que seria um ditador. É isso que faz a Constituição de 1822 que, neste sentido, é uma Constituição verdadeiramente democrática. Ela coloca o poder no povo que, através dos seus representantes no Parlamento, outorga e protege os direitos individuais dos cidadãos perante o Estado (que na altura se confundia com o rei).

São os cidadãos, em conjunto, formando o povo, que detêm o poder e que põem o rei (Estado) em sentido, delimitando-lhe o poder e traçando uma linha vermelha - constituída pelos direitos individuais - que o rei (Estado) não pode ultrapassar e que é obrigado a respeitar. É este princípio democrático da soberania popular que anima a Constituição de 1822 e também a Constituição de 1838.

Mas não é este o caso da Constituição de 1826, na realidade, uma Carta Constitucional, que foi outorgada pelo rei (Estado) aos portugueses. Nesta Carta, é o rei (D. Pedro IV), representando o Estado, que  confere os direitos individuais aos portugueses e é o seu garante.  Por outras palavras, a soberania já não está nos cidadãos e, em agregado, no povo, mas passa a estar no rei, que é ao mesmo tempo o Estado.

A grande diferença que daqui resulta é que nas Constituições de 1822 e 1838 os portugueses são tratados democraticamente como cidadãos, ao passo que na Carta Constitucional de 1826 eles são tratados autoritariamente, de cima para baixo, como súbditos. E é aqui que surge uma das conclusões mais surpreendentes da obra do Professor Rui Albuquerque.

Das três Constituições saídas da revolução liberal de 1820 aquela que esteve mais tempo em vigor no país foi a que tratava os portugueses como súbditos - a Carta Constitucional de 1826. Mas não apenas isso. Depois deste período, Portugal teve mais três Constituições - as de 1911, 1933 e 1976

E a conclusão mais surpreendente é que de todas as Constituições que Portugal teve nos últimos duzentos anos, num total de seis, a que esteve mais tempo em vigor - uns incríveis 72 anos - foi ainda a Carta Constitucional de 1826 outorgada por D. Pedro IV, que tratava os portugueses de cima para baixo como súbditos e não como cidadãos.

Esta conclusão diz muito acerca da dificuldade que a cultura democrática tem tido para se estabelecer em Portugal. Uma das críticas que hoje se faz à democracia portuguesa é a falta de cidadania dos portugueses, responsável, por exemplo, pelo estado em que se encontra o seu sistema de justiça (curiosamente, o poder-chave de uma democracia).

Não é surpreendente. Depois de ler o livro do Professor Albuquerque fica a conclusão de que os portugueses sempre gostaram mais de ser tratados como súbditos do que como cidadãos. A diferença está entre aquele que baixa sempre a cabeça perante os detentores dos poderes do Estado, mesmo quando estes são exercidos de forma arbitrária ou injusta, e aquele que nunca se curva a isso porque acredita que o poder está nele e nos seus concidadãos, e o Estado está meramente ao seu serviço.

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