18 maio 2020

A jurisprudência (I)

I. A tradição de jurisprudência



Uma das componentes mais marcantes de uma tradição judicial democrática é a sua tradição de jurisprudência.

Uma democracia é um regime de regras, mas não basta a existência de regras ou leis para que se faça justiça. Tão importante como a existência de leis, é a maneira como elas são interpretadas e aplicadas pelos tribunais. Ora, a jurisprudência consiste precisamente no conjunto de regras que os tribunais utilizam para interpretar e aplicar as leis.

Faz agora dois anos, no âmbito do meu case-study, eu estava a ser julgado no tribunal de Matosinhos por ofensas à sociedade de advogados Cuatrecasas e difamação do seu director, o eurodeputado Paulo Rangel, por causa de um comentário televisivo.

Ao mesmo tempo, eu comentava abundantemente neste blogue as incidências do julgamento e a jurisprudência aplicável (cf. aqui). A tal ponto que um amigo meu, que lia o blogue, e presumindo que o juiz também o lia (algo que eu também presumia), um dia me disse com um certo ar de preocupação e de aviso:

-Vê lá… tu parece que estás a dizer ao juiz aquilo que ele deve fazer…

Já não me lembro aquilo que respondi na altura, mas deve ter sido alguma coisa do jeito:

-Sim... para o caso de ele não saber…

E a verdade é que, em parte, ele não sabia, ou não quis saber, e foi por causa disso que, no final, eu só lhe pude dar uma nota de 12 valores numa escala de zero a vinte (cf. aqui).

Não sabia ou não quis saber… É que Portugal não possui uma tradição judicial democrática e, portanto, uma tradição de jurisprudência.

A minha constante invocação da jurisprudência neste blogue na altura, e de outras incidências do julgamento, provocou uma enorme irritação entre alguns dos participantes. Os advogados da Cuatrecasas, depondo na condição de testemunhas, queixavam-se constantemente ao juiz que eu andava a comentar o julgamento em público (como se fosse um crime comentar em público um julgamento que, por natureza, é público) e, a partir de certa altura, mencionavam o blogue explicitamente pelo nome. O Papá Encarnação, em diversas ocasiões, parecia estar mesmo de cabeça perdida.

No final, os juristas pareciam estar todos de cabeça perdida. Nas alegações finais, o magistrado X (J. Ferreira da Rocha) disse que a CEDH não se aplicava a Portugal. O Papá Encarnação foi mais requintado e sugeriu que a CEDH se aplicava a Portugal, mas não a mim, porque não era jornalista. E o próprio juiz, na sentença, disse que a jurisprudência do TEDH valia para a ofensa ao Paulo Rangel, pela qual me absolveu, mas não valia para a ofensa à Cuatrecasas, pela qual me condenou. Ainda se fosse a TAP ou a CGD… (cf. aqui e aqui).

Juristas mais brilhantes eu nunca tinha conhecido.


(Continua)

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