III. O julgamento do cidadão comum
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a imparcialidade dos juízes é uma jurisprudência muito simples, como é toda a jurisprudência democrática a fim de que os cidadãos possam saber com clareza quais "as regras do jogo" social, ou "as linhas com que se cosem".
O TEDH começa por distinguir a imparcialidade subjectiva, que se refere à predisposição do juiz para ser imparcial (i.e, um juiz não estar pessoalmente enviesado contra ou a favor de qualquer uma das partes), e a imparcialidade objectiva que se refere à existência ou não de factos que possam afectar essa predisposição.
A imparcialidade subjectiva é sempre presumida, isto é, presume-se sempre que qualquer juiz, em princípio, deseja ser imparcial e não tem enviesamentos contra ou a favor de qualquer das partes. A questão está na imparcialidade objectiva: existirão ou não factos objectivos que possam pôr em causa essa predisposição?
A reposta a esta questão não é dada por especialistas, sejam eles advogados ou juízes. É dada pelo cidadão comum, e este é outro aspecto da democraticidade da jurisprudência do TEDH. Na legislação portuguesa, quem avalia se o motivo é "sério e grave" para pôr em causa a imparcialidade do juiz são advogados e juízes. Na jurisprudência do TEDH o juiz vai ter de se pôr na posição do cidadão comum e interpretar o julgamento do cidadão comum.
Por último, para que a imparcialidade de um juiz seja posta em causa não é necessário, na jurisprudência do TEDH, que o juiz tenha sido parcial. Basta que exista a aparência de que isso possa acontecer. A razão é que, numa sociedade democrática - tal como com a mulher de César -, as aparências também contam. Não basta que se faça justiça, é necessário também que todos percebam que se faz justiça.
Vou agora de volta ao meu primeiro exemplo (cf. aqui). Um juiz apresenta-se a decidir um processo em que de um lado está um cidadão e do outro uma empresa imobiliária. A mulher do juiz é sócia desta empresa.
À luz da jurisprudência do TEDH nem é preciso ir mais longe e dizer que o juiz decidiu a favor da imobiliária e que, com essa decisão, a sua mulher (e, por consequência ele próprio) beneficiaram em 100 mil euros.
O direito do inquilino a uma tribunal imparcial, como prevê o artº 6º da CEDH, foi violado e esta decisão deveria ser anulada (e certamente teria sido se o inquilino tivesse recorrido para o TEDH).
Repare-se agora como seria se o assunto fosse decidido à luz do artº 43º do CPP e respectiva jurisprudência. Ficava-se eternamente a discutir se o facto de a mulher do juiz ser sócia da imobiliária constitui motivo "sério e grave" para pôr em causa a imparcialidade do juiz. O advogado da imobiliária vai achar que não, o juiz também acha que não e provavelmente outros juízes que venham a ser chamados para decidir a questão, para proteger o colega e a "imagem" da justiça também vão achar que não.
E assim se cometeu uma injustiça, dando a aparência de que se está a fazer justiça.
Passo agora ao meu case-study e salto directamente para o argumento (b) referido em baixo (cf. aqui). O juiz Vaz Patto e o Paulo Rangel fazem parte da mesma organização, ambos ocupando nela lugares institucionais; a associação financia-se com dinheiros públicos e por isso tem de fazer lobby permanente junto dos políticos; na realidade, esta associação é um verdadeiro ninho de lobbying político; se eu fôr condenado a indemnizar o Paulo Rangel é bem provável que ele dê o dinheiro à associação, fazendo a felicidade do juiz.
Este juiz Vaz Patto tem claramente a sua imparcialidade tingida e o acórdão deve ser anulado.
Repare-se agora como seria tratada a questão ao abrigo do artº 43 do CPP e sua jurisprudência. Ficava-se a discutir eternamente se este facto - o de o juiz ser amigo ou, pelo menos, conhecido do Paulo Rangel, na associação o Ninho - seria um motivo "sério e grave" para pôr em causa a imparcialidade do juiz.
Os acusadores seriam os primeiros a achar que não. Foi o que fizeram, com o maior descaramento, o Papá Encarnação e o magistrado X, defendendo o juiz como se fossem seus procuradores, ao mesmo tempo que o juiz se escondia e não prestava qualquer esclarecimento sobre a situação.
Diga-se que, à luz da jurisprudência do TEDH, que é aquela que prevalece, também de nada lhe valia. Qualquer cidadão comum a quem se mostrasse este documento (cf. aqui) e também este (cf. aqui) e a quem depois se perguntasse:
-Acha que o juiz Pedro Vaz Patto reúne as condições de imparcialidade para julgar um caso em que está envolvido o político Paulo Rangel e outra pessoa?...
ele certamente responderia, na linguagem que é própria do cidadão comum português
-Eh pá... não, pá ...esses gajos são amigos...
(Continua)
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