15 dezembro 2013

a tradição e os teólogos


"Maria é o que é graças a Ele".

A frase é do então cardeal Joseph Ratzinger (2005). É desta forma seca e definitiva que ele arruma a questão acerca do lugar de Maria no mistério da Redenção.

A frase vem no seguimento de uma pergunta do jornalista Peter Seewald inserida no livro "Deus e o Mundo" (tradução portuguesa: Edições Tenacitas, 2006, pp. 259-60): "Mais de um milhão de pessoas exigem que Maria seja elevada pela Igreja Católica a «co-redentora». Vai haver uma resposta favorável a essa solicitação, ou trata-se de uma heresia?».

O contexto em que o futuro Papa Bento XVI dá a resposta é o seguinte:

"(...) Dado que Maria antecipa a Igreja enquanto tal e, por assim dizer, é a Igreja em pessoa, esse «con» consuma-se nela de maneira exemplar. Mas esse «con» não deve fazer-nos esquecer que o «principal» é Cristo: tudo procede d'Ele, como dizem sobretudo as epístolas aos Efésios e aos Colossenses; Maria é o que é graças a Ele."

Praticamente, toda a obra teológica de Joseph Ratzinger é centrada na figura de Cristo, e Maria ocupa nela um lugar claramente secundário. A sua última obra já como Papa Bento XVI, a trilogia "Jesus de Nazaré", é apenas disso um exemplo - da sua concentração na figura de Cristo.

Na sua obra teológica existe um pequeno livro dedicado a Maria - "Maria-Primeira Igreja" (Editora: Gráfica de Coimbra) - uma colectânea de ensaios sobre Maria e a Igreja, uns da autoria de Joseph Ratzinger, outros do seu amigo, o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar. É um pequeno texto deste último que gostaria de citar. É constituído pelas primeiras linhas de um ensaio intitulado "O Sinal da Mulher - Ensaio de Introdução à Encíclica «Redemptoris Mater»" em que Balthasar faz a apresentação da Encíclica "Mãe do Redentor" (1987) do Papa João Paulo II perante uma audiência alemã. Diz ele:

"Uma encíclica sobre Maria, um ano mariano não encontram em geral grande entusiasmo no catolicismo alemão. Teme-se uma deterioração do clima ecuménico; antevê-se o perigo de uma piedade demasiado emocional" (op. cit., p. 33).

Porquê uma deterioração do clima ecuménico? Porque Balthasar está a falar para uma audiência alemã, a Alemanha é a pátria do protestantismo luterano e os luteranos não dão qualquer importância a Maria. Daí também que uma encíclica sobre Maria e um ano mariano não sejam de molde a suscitar qualquer entusiasmo entre os católicos alemães.

Aquilo que pretendo fazer realçar aqui é que os teólogos católicos que nas últimas décadas e no seguimento do Concílio Vaticano II fixaram a doutrina - e que a fixaram no Catecismo de 1993 - vêm todos, sem excepção, de países fortemente influenciados pelo protestantismo - especialmente o luterano. São homens como Ratzinger, Balthasar, Guardini (que apesar do nome italiano, era alemão), etc., que estão todos, de algum modo, influenciados pelo princípio protestante "Solus Christus".

Entre os teólogos que fixaram a doutrina católica no Catecismo, eu ainda não consegui descortinar um só que tenha vindo de um país de cultura católica tradicional - um português, um italiano um espanhol - porque talvez ele tivesse algo de diferente para dizer.

E é neste ponto que eu abandono os teólogos e passo para a tradição católica portuguesa. Portugal é talvez, pela sua situação geográfica, aquele dos países da Europa que menos sofreu a influência das ideias protestantes. É também um dos países mais antigos da Europa, senão mesmo o mais antigo em termos de fronteiras, e um país que se manteve sempre fiel à Igreja Católica - na realidade, um país cuja independência original de Castela se deve à Igreja Católica.

D. Afonso Henriques, ao consagrar as novas terras independentes à Virgem Maria, e ao chamar-lhes Terras de Santa Maria, estava seguramente a exprimir um sentimento popular dos povos que aqui habitavam e que muito antes da independência eram fieis devotos de Nossa Senhora. Esta tradição foi continuada pelos seus sucessores, com destaque para D. João IV, que a consagrou padroeira de Portugal.

Esta tradição permanece hoje. Quando o assunto é sério, como uma doença grave, uma questão de vida ou de morte, uma guerra, ou outra aflição, os portugueses exprimem a sua religiosidade dirigindo-se preferencialmente à Virgem Maria,  não a  Cristo.

Eu próprio, há cerca de três anos, fui a Fátima. Por que é que fui a Fátima, quando tenho quase à minha porta uma Igreja - chamada Igreja do Cristo-Rei - que, como o nome indica, é dedicada a Cristo? Não sei responder, excepto invocando a tradição. Eu fui a Fátima porque os portugueses, na  situação em que eu me encontrava na altura, normalmente vão a Fátima, vão à Virgem. Não tenho outra resposta, senão a da tradição  portuguesa em matéria religiosa.

E essa tradição é a de que os portugueses concentram a sua religiosidade católica na figura de Maria, muito mais do que na de Cristo. Existe aqui um conflito entre esta tradição ancestral e os teólogos modernos. A tradição popular dos países menos sujeitos à influência do protestantismo, como Portugal, fazem de Maria a figura central da sua religiosidade. Os teólogos modernos, quase todos vindos de países sujeitos à influência protestante, fazem de Cristo essa figura central

Quem estará certo? Não sei, embora eu tenda a inclinar-me para a tradição popular.

"Maria é o que é graças a Ele". Será? Será somente por ser mãe de Cristo que Maria é importante na história da salvação e, portanto, a sua importância nessa história é apenas uma importância derivada (do Filho), logo secundária?

É isso que o cardeal Ratzinger parece implicar. Existe, porém, um facto que o cardeal Ratzinger omite e que poderá ter importância teológica, que é a relação primordal e única entre Deus e Maria. Muito antes de Cristo existir, pelo menos alguns meses antes, Deus dirigiu-se a Maria, e ela aceitou. O mundo redimido manifesta-se em primeiro lugar na figura da noiva, no Sim de Maria.

6 comentários:

Rui Alves disse...

"Mas, ainda agora, quando o assunto é sério, como uma doença grave, uma questão de vida ou de morte, uma guerra, ou outra aflição, os portugueses exprimem a sua religiosidade dirigindo-se à Virgem, e não a Cristo."

Ora nem mais! Ocorre-me de imediato este cântico bem português que nos acalentou em tempos de guerra:

http://www.youtube.com/watch?v=d82lmJOifMk

zazie disse...

Tem os místicos que dedicaram dos mais belos textos à Virgem.

O Bernardo Claraval merece a pena ler.

Anónimo disse...

Muito bem Rui Alves e Zazie!
eao

Anónimo disse...

"Antes de Cristo existir"

um expressão sem sentido..

Anónimo disse...

"gerado, não criado, consubstancial ao Pai"
- Credo Niceno-Constantinopolitano

Goncas disse...

Caro Doutor,

A Sabedoria - Cristo - existe antes de tudo, esteve presente na Criação, como O agente. Na verdade a Trindade criou tudo, porque tudo o que pertence a Deus pertence a cada uma das pessoas da Trindade. Mas digamos que a Ideia da Criação estava no Pai, o Filho executou-a e o Espírito deu-lhe vida.

Enfim, sou ignorante para poder dizer como a Igreja entende isto de forma completa, posso apenas dizer que ninguém melhor do que Ela para nos dizer: vamos ao Catecismo e a tantas outras obras de referência - dos Santos e dos Doutores.

Mas ficam-me perguntas: como pode dizer que Maria é mais importante do que Cristo? Não faz sentido... A sua mãe foi mais importante do que o seu pai? Nem vale a pena usar comparações humanas, Cristo é a Sabedoria Divina Incarnada, não há homem que se lhe compare... Agora, Maria é procurada porque é a Medianeira de todas as Graças: se quiser pedir uma coisa a um homem, não é mais fácil falar primeiro com a mãe desse homem, para facilitar as coisas? É por isso que os Portugueses veneram Maria. Mas os Portugueses adoram Cristo. Veja a diferença entre os verbos venerar e adorar.