14 fevereiro 2013

Teoria do Município

Apêndice à Teoria do Município - António Sardinha (caracterizado como um integralista lusitano)

Para o Congresso Nacional Municipalista do Porto em 1924, que não chegou a realizar-se, escreveu António Sardinha, então Presidente da Câmara Municipal de Elvas, as teses seguintes:

1ª Tese O Município não é uma criação legal. Anterior ao Estado, é preciso defini-lo e tê-lo como organismo natural e histórico.

 2ª Tese A descentralização administrativa não é, por isso, suficiente para resolver o problema municipalista.

 3ª Tese Órgão da vida local, inteiramente extinta, mas que é preciso ressuscitar para que haja vida nacional consistente e intensa, o Município deve ser restaurado nos termos em que vicejaria hoje o velho e tradicional município mediévico, se o seu desenvolvimento não tivesse sido estrangulado por factores de sobejo conhecidos.

4ª Tese Essa restauração do nosso antigo Município equivale a considerá-lo não como uma simples função administrativa, mas como um centro de vida própria, espécie de unidade orgânica, abrangendo todas as relações e interesses dos seus convizinhos, desde o ponto de vista familiar e económico até ao ponto de vista cultural e espiritual.

5ª Tese Restaurado em tais condições, o Município, simultaneamente suporte e descongestionador do Estado, contribuirá para atenuar a crise mortal que este atravessa, vítima do centralismo excessivo que o depaupera e abastarda.

6ª Tese Como, em harmonia com o meio físico e a sua estrutura económica específica, os Municípios se não podem reduzir a um tipo único, – e esse é o erro da legislação herdada da revolução francesa – os Municípios poderão e deverão classificar-se segundo as características que lhe imprimam personalidade em MUNICÍPIOS RURAIS, MUNICÍPIOS INDUSTRIAIS, MUNICÍPIOS MARÍTIMOS, etc., havendo que admitir o MUNICÍPIOS-CIDADE, para os grandes centros urbanos. 

7ª Tese A classificação dos municípios, requerida por eles, importa consigo uma lei orgânica própria, – ou foral –, que o Município redigirá, entrando em vigor desde que receba a sanção do poder central.

8ª Tese E como, na tendência crescente para a substituição do “indivíduo” pelo “grupo”, é preciso constranger o sufrágio a aceitar novos moldes, a constituição das câmaras municipais deverá sair, em número igual, de vereadores eleitos directamente e de representantes ou delegados das associações e sindicatos existentes na área de concelho.

9ª Tese Na eleição municipal terão voto, além dos cidadãos em pleno exercício desse direito, as mulheres viúvas com lar constituído.

10ª Tese Revogar-se-ão, com critério prudente, as leis de desamortização no tocante aos Municípios, podendo estes adquirir terrenos para aforar nos termos do “casal de família”, – regímen a que igualmente poderão ficar sujeitos os baldios ainda existentes.

11ª Tese Para semelhante fim necessitam os Municípios ser autorizados ao lançamento de um tributo ou imposto especial sobre os proprietários absentistas.

12ª Tese Dentro dos Municípios e onde houver Misericórdias, a estas admiráveis e tão portuguesas instituições deverão pertencer as funções de assistência pública, como base local e consequentemente descentralizada, cabendo às câmaras municipais dispensar o apoio e auxílio de que as Misericórdias careçam para bem cumprirem a sua augusta missão.

13ª Tese Poderão os Municípios federar-se constituindo “regiões” em substituição dos “distritos” – decalque da legislação francesa, sem realidade geográfica nem justificação tradicional.

14ª Tese Aos Municípios que pela sua pequenez ou insuficiência financeira não seja possível existência autónoma, permitir-se-á também que se federem com outros, mas sem a perda da sua personalidade. 

15ª Tese A instrução primária deve ser de base técnica e regional.

16ª Tese É imperioso restaurar as Províncias, dotando-as de órgãos próprios e adequados. In À Sombra dos Pórticos.

18 comentários:

Luís Lavoura disse...

A primeira tese é rotundamente falsa.

O município é apenas uma divisão administrativa criada pelo Estado central. Foi este quem, desde o tempo da realeza, concedeu cartas de foral e o direito de certas vilas administrarem a justiça. Foi também ele quem delimitou os municípios, extinguiu municípios e criou novos municípios.

É natural que os municípios pretendam alterar estes factos, como se vê na tese do sr Sardinha. Mas factos são factos.

E é um erro fatídico pretender promover meras divisões administrativas de um Estado a entidades próprias - veja-se o que aconteceu na ex-Jugoslávia.

CN disse...

"concedeu cartas de foral e o direito de certas vilas "

depende como interpretar conceder... conceder ou reconhecer?

as vilas já lá estavam certo?

rui a. disse...

As "cartas de foral" eram cartas de privilégio, porque consagravam um estatuto especial às povoações que as recebiam. Nem todas eram emitidas pelo rei, podendo ser emitidas por um senhor laico ou eclesiástico, isto é, o detentor de uma terra senhorial civil ou da Igreja. Por outro lado, eram documentos pactuados, ou seja, negociados entre a entidade emissora e os representantes das populações que as recebiam.
Foi neste modelo que, mais tarde, se viriam a inspirar os poderes constituintes modernos, vistos, eles também, como procedimentos negociais entre o chefe da comunidade nacional - o rei - e os representantes da população - os membros das câmaras parlamentares constituintes. As constituições eram vistas como verdadeiras "cartas de privilégio" e, tal como os forais, tinham conteúdo semelhante, já que nelas se estabelecia também a orgânica do poder, sobretudo na sua relação entre governantes e governados.

CN disse...

Vamos recorrer à Sci-fi

Imaginemos que descobrimos um planeta cheio de vilas no estado tecnológico medieval. Muito mais atrasado, e assim pretende-se exercer um domínio esclarecido e iluminista.

O que se faz? O bom império do planeta terra, a federação...

"Concede" "cartas de foral" que são cartas de privilégio e mantém-se razoavelmente fora dos seus assuntos excepto a cobrança de algumas taxas e resolver alguns problemas.

Mais tarde vem alguém, dizer:

Essas aldeias são fruto do desenho do bom império e a própria organização do estado (federação) que lhes concedeu privilégios?

Então como é? o próprio acto de formação de um poder central, sempre com a ameaça velada do caminho poder ser outro, estabelece-se a si próprio como "monopolista" e depois concede "privilégios" que nesse acto é que faz nascer a entidade que os recebe?

CN disse...

O que sabemos da Idade Media e da época das trevas é que as relações feudais no seu melhor correspondiam a populações que estabeleciam um vínculo com caráter contratual sagrado com um senhor de guerra ou elite, com obrigações mútuas. Isto é o melhor da versão. O pior é a pura e simples aplicação da força.

Uma mistura das 2 naturezas é possível.

Depois o poder forma a sua própria lógica de agregação e centralização crescente. A maior parte das vezes criando a própria insegurança com que depois vendem o seu serviço de segurança e apoiado em intelectuais.

Para mim, está tudo muito bem, assim existe direito pacífico de secessão ainda que tenham existam muitos critérios de praticabilidade.

CCz disse...

A 15ª tese é muito interessante e actual

rui a. disse...

"s relações feudais no seu melhor correspondiam a populações que estabeleciam um vínculo com caráter contratual sagrado com um senhor de guerra ou elite, com obrigações mútuas."
Não é isso que o Rothbard pensa sobre o feudalismo, como sabe.
.
Quanto à designação "cartas de privilégio", onde, para além das cf, outros documentos se podem incluir, como as cartas de feira, de isenções fiscais, etc., isso significava que as populações/comunidades/pessoas que as recebiam estavam, de facto, numa melhor situação do que as demais. O que significa que, por um lado, essas obrigações perante o poder público existiam, e que era ao poder público que competia negociá-las.
Isto nada tem de sci-fi. É apenas História.

rui a. disse...

"s relações feudais no seu melhor correspondiam a populações que estabeleciam um vínculo com caráter contratual sagrado com um senhor de guerra ou elite, com obrigações mútuas."
Não é isso que o Rothbard pensa sobre o feudalismo, como sabe.
.
Quanto à designação "cartas de privilégio", onde, para além das cf, outros documentos se podem incluir, como as cartas de feira, de isenções fiscais, etc., isso significava que as populações/comunidades/pessoas que as recebiam estavam, de facto, numa melhor situação do que as demais. O que significa que, por um lado, essas obrigações perante o poder público existiam, e que era ao poder público que competia negociá-las.
Isto nada tem de sci-fi. É apenas História.

zazie disse...

A 15ª tese já o VPV tinha referido como a maior condenação que se pode fazer a quem nasce nas berças.

Luís Lavoura disse...

CN

depende como interpretar conceder... conceder ou reconhecer?

as vilas já lá estavam certo?


As vilas já lá estavam, mas não tinham o direito ao exercício do poder judicial. O rei é quem concedia esse poder. E, ao fazê-lo, atribuía uma importância especial à vila.

Além disso, uma vila não é um município. Um município é uma área territorial, que pode ter no seu interior uma ou mais vilas e/ou cidades (ou pode não ter). O facto de haver uma vila num qualquer sítio não implica que haja um município. (Por exemplo, a vila de Santo António das Areias é a maior do concelho de Marvão, mas não é sede do município.) O poder central é que determina qual a área de cada município e quais as vilas e/ou cidades que ele engloba ou deixa de englobar. (Por exemplo, a cidade de Fátima não é sede de município, apesar de estar lá.)

Luís Lavoura disse...

Como se viu no caso da Jugoslávia, é um erro que pode sair muito caro o pretender que meras divisões administrativas de um Estado são entidades próprias.
A Jugoslávia estava administrativamente dividida em seis repúblicas e duas regiões autónomas. As linhas de delimitação dessas entidades todas eram mais ou menos fictícias: havia áreas da república da Croácia que eram quase totalmente habitadas por sérvios, áreas da república da Bósnia que eram habitadas por croatas e outras por sérvios, áreas da Sérvia que eram habitadas por albaneses, etc. Quando se pretendeu transformar essas meras divisões administrativas em entidades independentes, foi o que se viu.
O meu pai era natural de uma aldeia (e freguesia) que faz parte do município de Águeda, mas toda a gente naquela aldeia hoje em dia está muito mais virada para a cidade de Oliveira do Bairro, que fica mais perto (e é mais próspera). Para as pessoas dali, seria altamente preferível fazer parte do município de Oliveira do Bairro em vez do de Águeda.

CN disse...

Quanto à Jugoslávia e os balcãs tudo aquilo já era um problema antes da WWI depois ainda pior.

Quanto à questão portuguesa, se deixarmos as freguesias terem um processo de associação/desassociação...

rui a. disse...

"As vilas já lá estavam, mas não tinham o direito ao exercício do poder judicial. O rei é quem concedia esse poder. E, ao fazê-lo, atribuía uma importância especial à vila."
Atenção que a justiça municipal é muito anterior à régia. O processo de centralização da justiça (e do direito) inicia-se, em Portugal, a partir de 1248, com Afonso III, mas principalmente com Afonso IV. As fontes concorrentes de direito (costume e jurisprudência) mantêm-se até à Lei da Boa Razão, de 1769, embora já muito fragilizadas, nessa altura, em detrimento da lei régia. De todo o modo, desde 1446, com as Ordenações Afonsinas, o costume e a jurisprudência só eram fonte de direito se cumprissem os requisitos legais das Ordenações, ou seja, os requisitos impostos pela lei régia. Foi a primeira e uma muito importante subversão da posição relativa das fontes de direito nacional.

CN disse...

Bem, rui .a, eu fico com dificuldade em compreender então porque não ver a formação do estado do moderno com um em que porque tem poder, começa aos poucos a destruir toda e qualquer fonte de direito que não lhe pertença. No início começa por conviver e aos poucos não. Até ao presente momento.

O rui a. faz soar como se tudo fosse uma evolução naturalíssima...

CN disse...

" O poder central é que determina qual a área de cada município"

bem, o poder central determina tudo... o que lhe deixarmos determinar ou o que ele impuser,

não tenho noção quanto dos municípios apesar de tudo correspondem a áreas com tradição, mas o conceito de município indo aos forais suponho que sim

ou seja o conceito, "criou" do "nada", têm poderes porque lhe "concederam"...

tudo isso dependerá também da nossa própria visão interpretativa a história, não existe "história" sem uma visão.

rui a. disse...

"O rui a. faz soar como se tudo fosse uma evolução naturalíssima..."
Ó CN, você não me quer obrigar a mudar a História do Direito Português, pois não? Por mais competência que tenha, para isso ainda não dou. Agora, se quiser falar com os pés assentes na terra e não a partir do espaço sideral, poderemos discutir o que foi a evolução das fontes de direito nacional. Infelizmente, é matéria que vou dominando, porque a ensinei durante quase 20 anos e, garanto-lhe, não dá para estarmos para aqui a inventar. Se tiver dúvidas, posso citar-lhe a legislação do Afonso IV a pretexto, por exemplo, da proibição da vindicta privada, isto é, impedindo a aplicação da justiça pelas próprias mãos, o que foi feito para implementar a administração judicial no território nacional, as relações entre a justiça municipal e senhorial e a justiça régia (que, desde sempre, admitiu interposição de recurso para a justiça do rei, no que esta funcionava como uma espécie de STJ, de competência plena, da época), e por aí em diante. Garanto-lhe, caro CN, que aqui não há muito espaço para teorias: ou se sabe ou não se sabe.

rui a. disse...

Por último, deixo-lhe aqui um desafio: Você que defende - e bem (eu próprio também defendo) - o concurso das fontes de direito numa mesma ordem jurídica, sabe que vive, em Portugal, presentemente, com uma ordem jurídica que recebe normas de direito que não se esgotam na lei do legislador? Que aceita nos tribunais portugueses normas de proveniência jurisprudencial e consuetudinária? E que é a primeira vez, desde 1769, há quase 250, portanto, que tal coisa acontece? Quer discorrer sobre o assunto?

Pedro Sá disse...

Ora, toda a Europa continental funciona administrativamente em sistema de raiz napoleónica, pelo que é absurdo dizer que os municípios são anteriores ao Estado.