18 março 2012

necessidades vitais

O post do Joaquim que tenho vindo a referir representa um manancial de oportunidades para esclarecer e desenvolver um certo número de aspectos da doutrina económica do catolicismo. Tanto mais que o post do Joaquim me parece, nas entrelinhas, desvalorizar esta doutrina assimilando-a ao socialismo. Parece acontecer assim quando ele sugere que uma economia baseada no catolicismo implicaria significativas transferências de riqueza a fazer lembrar as transferências igualizadoras de riqueza, por via do Estado, que são típicas do socialismo.

Antes de me debruçar sobre a questão eu gostaria de reiterar três pontos que já desenvolvi neste blogue. Quem pretende assimilar o catolicismo ao socialismo está muito enganado, muito mais enganado do que quem pretende assimilá-lo ao liberalismo. É que o socialismo nasceu num meio luterano - a Alemanha - que era radicalmente anti-católico, ao passo que o liberalismo nasceu num meio - a Grâ-Bretanha - que era uma mistura de anglicanismo e de calvinismo, doutrinas estas, especialmente o anglicanismo, que estão muito mais próximas do catolicismo. E se dúvidas restassem, a Encíclica Centesimus Annus (1991), a respeito dessa luta pela supremacia entre as duas ideologias de origem protestante - o liberalismo e o socialismo - reconheceu a superioridade inquestionável do liberalismo face ao socialismo.

 
O segundo ponto é o de que o catolicismo já existia muito antes do liberalismo (séc. XVIII) ou do socialismo (séc. XIX). Aquilo que ambas estas ideologias fizeram foi amputar o catolicismo, e depois exagerar algum dos seus preceitos fundamentais, o liberalismo exagerando o predomínio do indivíduo sobre a comunidade, o socialismo exagerando o predomínio da comunidade sobre o indivíduo. A posição católica tradicional a este respeito é a de um equilíbrio entre o indivíduo e a comunidade, com um ligeiro predomínio do indivíduo sobre a comunidade (e também aqui o liberalismo está mais próximo do catolicismo do que o socialismo).

Finalmente, o terceiro ponto é o de que as sociedades de tradição católica - como Portugal, a Espanha ou a Itália - são muito menos igualitárias, em termos económicos, do que as sociedades de tradição protestante, como a Alemanha, a Suécia, a Noruega, ou mesmo a Inglaterra e os EUA. A julgar pela evidência dos indicadores de desigualdade na distribuição da riqueza, não existe o risco de uma economia de tradição católica promover transferências maciças e igualizadoras de riqueza entre comunidades ou entre pessoas. Esse risco existe é numa economia de tradição protestante.

Em posts anteriores eu tive oportunidade de desenvolver a ideia de que o edifício económico do catolicismo assenta, em primeiro lugar, na dádiva (caridade), só em segundo lugar no interesse (mercado), e só mesmo em último lugar no poder (Estado). Pelo contrário, uma economia socialista é que assenta em primeiro lugar no poder, em segundo lugar no interesse e só em terceiro lugar na dádiva. Para uma economia liberal, a hierarquia é, primeiro, o interesse, segundo, a dádiva, terceiro, o poder.

Por isso, as transferências de riqueza intercomunitárias que ocorrem dentro de uma economia de tradição católica são, em primeiro lugar, dádivas, e não imposições, via tranferências fiscais, como acontece numa economia socialista. E que dádivas serão essas, que necessidades visam satisfazer as transferências voluntárias entre comunidades numa economia católica, são para comprar automóveis ou barcos à vela?

Não. São para satisfazer necessidades vitais das populações. A água, que motivou o post do Joaquim, é, a este respeito um belo exemplo. Se uma certa comunidade, seja qual fôr a razão - seja porque é muito pobre seja até porque todos os seus membros são preguiçosos e não gostam de trabalhar - não dispõe de água potável, enquanto outras comunidades à volta dispõem dela, aquilo que a Igreja iria apelar em primeiro lugar era para que estas últimas dessem água à outra. E quem se negaria a fazê-lo?

A Igreja iria apelar a que as outras comunidades dessem água àquela outra - supostamente uma comunidade de preguiçosos (como este aqui retratado, que nasceu sem vontade de trabalhar) porque os preguiçosos também são filhos de Deus - e provavelmente as outras comunidades não se negariam a fazê-lo. Mas a Igreja nunca apelaria a que lhe dessem também barcos de recreio ou Mercedes descapotáveis. E isto é assim porque a Igreja preza mais a diferença do que a igualdade. É o princípio do personalismo católico.

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro PA,

Seguindo atentamente o que tem escrito, passei a olhar para certos aspectos da realidade em que cresci de forma diferente. Uma delas foi a questão da dádiva como base da economia Católica. Ora, falta-me mundo para saber como será em outros lugares, mas onde cresci, o paradigma da dádiva estava presente todos dias. Deixo alguns exemplos:

- O meu avô, lavrador, tinha um tanque para lavar roupa. Era único tanque naquela zona da freguesia. Toda gente ia lá lavar a roupa e nunca nada foi cobrado. Esse mesmo tanque era usado pela senhora que vendia tremoços no Bom Jesus de Braga para pôr os tremoços de molho. Nunca nada foi cobrado à senhora apesar do claro beneficio económico resultante de vendas dos referidos tremoços.
- Nunca o meu avô pagou a ninguém pela vindima. No dia em causa apareciam os homens da aldeia e a vindima fazia-se. No sábado seguinte todos iam para a vindima do vizinho. Quem não tinha vinha aparecia também e participava na dádiva.
- Lembro-me de um incêndio na quinta de um dos nossos vizinhos. O sino tocou a rebate e todos os que estava por perto apareceram para apagar o fogo. O fogo foi apagado e quando os bombeiros chegaram apenas fizeram o rescaldo ( a tal função subsidiária do Estado, que tanto tem referido). Nos dias seguintes quase todas as perdas resultantes do incendia tinha sido repostas pela comunidade ( sementes perdidas, forragem para o gado, um arado, etc.)

A sua teoria económica encaixa com a minha realidade. E eu apenas tenho 33 anos, ou seja, não estamos a falar da longínqua década de 40 ou 50 do seculo passado.

Obrigado por partilhar a sua caminhada.

Alberto Mendes