02 fevereiro 2012

coisa boa

Se o valor das coisas não se encontra através da opinião expressa no mercado, então como se encontra? No post da D. Angelina abri a porta à resposta - inquirindo. Mas inquirindo o quê?

A resposta a esta questão fica para o próximo post. O meu propósito aqui é expôr as duas teorias do valor que têm corrência entre os economistas modernos, e que possuem ambas uma origem e um carácter distintamente protestante.

A teoria do valor-trabalho teve origem no próprio Adam Smith (escocês), o fundador da Ciência Económica moderna, nos finais do século XVIII. Já no século XIX ela foi prosseguida por David Ricardo, um economista inglês, com ascendência judaica e portuguesa (No início dos anos 80 no Canadá, o meu director de tese, Ronald G. Bodkin, que era americano, certo dia perguntou-me como se chamava o meu filho, e eu respondi: Ricardo. “It is a very nice name for the son of an economist”, concluiu ele). Esta teoria viria a ganhar a sua máxima expressão com Karl Marx (alemão), um ricardiano confesso.

Segundo esta teoria, as coisas possuem valor porque têm trabalho humano incorporado. É o trabalho que confere valor às coisas. Daqui viria a resultar a célebre tese marxista da luta de classes. Se o trabalho é a fonte do valor, então só os operários produzem valor, os capitalistas limitam-se a apropriar uma parte do valor produzido pelos operários. Daqui a oposição de classes. Para acabar com a situação é preciso acabar com os capitalistas, e isso consegue-se nacionalizando todos os meios de produção, e instalando um sistema político em que os operários estejam no comando - a ditadura do proletariado. Toda a propriedade é do Estado e o Estado é dos proletários. Os proletários apropriam-se de todo o valor que é produzido por eles próprios. Acabou-se a exploração de classes..

Esta teoria não nega apenas valor à contribuição dos capitalistas no processo produtivo. Ela tem dificuldade em explicar - na realidade, nega qualquer valor - ao sol, aos mares, aos ventos e às pepitas de ouro encontradas na margem de um rio, porque nada disto tem trabalho incorporado.

O carácter protestante da teoria revela-se no facto de ela colocar a fonte do valor numa abstracção - o trabalho -, e não em algo de concreto, como uma pessoa, uma árvore, ou o sol, e de conduzir directamente à oposição, à exclusão e à luta, que é onde invariavelmente desemboca o pensamento luterano.

Pela mesma altura, ao longo do século XIX, nascia em três países diferentes, mas de modo independente, uma teoria do valor concorrente - a teoria subjectiva do valor - devida aos economistas William Stanley Jevons (Inglaterra), Carl Menger (Austria) e Léon Walras (Suíça). Esta teoria viria a ser desenvolvida por economistas austríacos e acabou por integrar a chamada escola austriaca do pensamento económico. Os principais foram Ludwig von Mises, um judeu que viria a emigrar durante II Grande Guerra para os EUA; e Friedrich Hayek, um católico encapuçado, que acabaria por receber o Prémio Nobel da Economia em 1974, fazendo carreira em Inglaterra (London School of Economics), EUA (Universidade de Chicago) e acabando na muito católica cidade de Friburgo, na Alemanha, como professor da respectiva universidade.

É esta teoria que está na base da ideia do mercado como determinante do valor. Segundo a teoria, as coisas possuem valor porque as pessoas, certa ou erradamente, vêem nelas meios apropriados para satisfazer certos fins. O valor resulta da opinião que as pessoas têm acerca das coisas e essa opinião, exprimindo-se de forma agregada no mercado, determina o valor das coisas.

Os elementos protestantes da teoria estão ainda presentes. Primeiro, a teoria faz ainda derivar o valor de uma abstracção - a opinião pessoal. Segundo, como é próprio do pensamento protestante anglo-saxónico, no seio do qual ela se tornou popular, conduz à competição (“a minha galinha é melhor que a tua”), e não já à oposição e à luta como é típico do pensamento germânico.

Existe um enorme mal entendido acerca desta teoria, a qual tendo, em parte, origem na Austria, que é um país católico, se toma por vezes como representando a teoria católica do valor. Mas não é. O catolicismo austríaco é um catolicismo muito tingido pelo protestantismo alemão, e os autores que a desenvolveram pouco tinham de católicos. Carl Menger tinha uma origem boémia - uma das sedes mais radicais do protestantismo -, von Mises era judeu, e Hayek só admitiu o seu catolicismo próximo da morte, tendo-se declarado toda a vida um agnóstico. Kant, o filósofo do protestantismo, é um influência decisiva sobre todos eles

Segundo esta teoria, se as pessoas acharem que as túlipas servem para grandes desígnios, o preço das túlipas vai subir ao céu. Se, no dia seguinte, acharem que as túlipas já não servem para nada, o preço das túlipas cai por terra. As túlipas que valiam muito ontem, passam a não valer nada hoje. É esta teoria do valor que conduz às bolhas especulativas, e uma das mais clássicas - precisamente a bolha das túlipas - só podia ter ocorrido num país protestante.

Chegado ao fim, o ponto que eu gostaria de chamar a atenção é o seguinte. Ambas as teorias se desenvolvem nos países do norte da Europa e de influência protestante. Os intelectuais dos países do sul da Europa - Espanha, Itália, Portugal, e à parte a ascendência portuguesa de Ricardo - não têm nenhuma participação no debate. Em parte, porque, à boa maneira protestante, nunca se espera que daqui possa sair coisa interessante, e menos ainda coisa boa.

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